Não quero filosofias. Recorro à infância.
Vem de lá — talvez seja nossa herança mais preciosa e duradoura — a sensação do que enleva, consola e espanta, que transcende sem transcender, que pede mais ar.
No comecinho de “As Margens da Alegria”, conto que abre o livro “Primeiras Estórias”, Guimarães Rosa entretece:
“O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária.”
O dom de cultivar essa “verdade extraordinária” é dádiva da vida, e nasce na infância, como suponho.
A beleza então precisa ser cultuada e amada. Mas agora também purgada.
Porque corre perigo. E há que resistir.
Entrei para o Movimento da Liberação da Beleza, movimento que acabo de fundar e aproveito para lançar aqui agora, somente para seus olhos.
A beleza vem sendo usada nas ciências humanas como um cadáver nas ciências médicas; tratada como corpo morto em formol, dissecada.
A beleza foi acossada e degradada; querem bani-la.
Mais exatamente foi “problematizada” pela Teoria, quando o que deveria ter sido problematizada era a própria problematização da beleza.
(A Teoria, com maiúscula, sistema que impera no ambiente acadêmico norte-americano, tem larga influência no Brasil e vai além da universidade. Para os mais corajosos em se meter nesse cipoal, nesse cabuloso “berenjenal”, recomendo “Teorias Cínicas”, de Helen Pluckrose e James Lindsay, da Faro Editorial).
Em um mundo ameaçado pelo esgotamento, sem utopias, de novas guerras, inclusive as tais guerras “culturais”, de terrorismo e Terror de Estado, o que pode curar tanta ferida?
A beleza é que não pode. Nem se presta a operar milagres.
A beleza traz alegria mas pode vir da tristeza, pode flutuar sobre a tristeza.
Sei que o bombardeio ao humanismo e à razão não vai ajudar; negar a “natureza humana”, como se faz, tampouco.
Sei que nossa impotência sob as corporações tecnológicas e a cultura algorítmica é beco sem saída cercado pelo caos.
Sei que em meio a tudo isso buscar a beleza é subversivo, parece ter algo de criminoso, sujeito às novas inquisições com fogueiras alimentadas por hashtags.
O risco é grande, pense bem minha leitora, meu leitor, antes de aderir ao movimento.
A busca da beleza é solitária e perigosa. Vai na contramão. E seu caminho não tem volta.
A beleza nos reinventa, cuidado. Ao menos um poeta a condena, por “inútil”.
A diversidade da beleza é extraordinária, tão vária quanto o humano, quanto a vida, aliás está nos limites do que nos humaniza.
Pode estar por um fio de luz fugidia ou rebentar em pontos luminosos.
Está no caminho da arte, concentrada, latente, pronta para saltar de órbita.
Mas é preciso um pouco de empenho e dedicação de nossa parte para que se achegue.
Retenho uns exemplos, casos, quem sabe, como se diz, uns “cases” (subversivos), que me ocorrem de beleza concentrada (alguns vão na playlist no final) a que recorro a diário como quem reza ou vai ao médico:
Umas modulações de Rachmaninoff e Schubert...
Nelson Freire tocando o “Orfeu e Eurídice” de Gluck/Sgambati; Maria João Pires tocando as “Cenas Infantis” de Schumann...
Um choro de Pixinguinha, uma canção de Chico, uma canção de Caymmi, um samba de Assis Valente, de Noel, de Ary, de Ataulfo, de Ismael...
A voz e o canto de Milton, a voz e o canto de João Gilberto...
Uns versos de Drummond, Bandeira, Pessoa...
Um parágrafo de cinco páginas de Marcel Proust; uma passagem, uma margem de Rosa...
Maryl Streep em cena; Fernanda Montenegro em cena; Grande Otelo em cena, como no vídeo que aí vai...
Os primeiros passos de um filho...
Uma pintura de Degas.
Há um livro de Ferreira Gullar (“Relâmpagos”) que é uma beleza em si mesmo, como objeto gráfico.
Saiu em 2003 pela Cosac & Naify; com sorte você o encontrará em bom estado num sebo.
Em textos curtos, notas, poemas, Gullar exerce uma modalidade particular e original de crítica.
O poeta pretendeu revelar a experiência mais direta com a obra de arte “para tentar apreender-lhe o frescor, a verdade material e poética”.
Não conhecia este desenho (pág. 32) em pastel de Degas, “Mulher se Penteando”; quando abri a página, quando o vi na página, suponho ter experimentado a mesma surpresa relampejante do poeta; ele anotou:
“[É] de uma beleza que a pintura, se havia conhecido antes, esquecera. De certo nunca a conhecera exatamente assim porque, como se sabe, a história não se repete e a arte verdadeira é sempre nova”.
Mas agora, quando a beleza é dissecada, “problematizada” na academia e por aí, quando jovens atiram sopa na Monalisa e vandalizam obras para salvar o mundo — frutos iguais da mesma árvore absurda;
Quando obscuridades labutam para nos separar e isolar;
Quando diretores de museus pisam em ovos para não ferir doutrinas das novas seitas sem deus, ao abandonar quaisquer programas estéticos;
Quando devemos ir aos museus não mais como apreciadores autônomos da história, da arte e da beleza, até como estetas.
Devemos frequentar museus como militantes em ação política; como fiscais da conformidade do espaço expositivo; como bedéis certificadores do banimento de artistas que há cem, 200 ou 300 anos ousaram transpor concertinas que acabam de ser estendidas em muros morais virtuais.
É, senhoras e senhores, a beleza está ameaçada de extinção, como espécies tantas de pássaros e mamíferos.
Pois salve a beleza! Viva a beleza!
Em artigo recente no “El País” (“Novos Fantasmas Leninistas”), o escritor espanhol Antonio Muñoz Molina pondera que foi a custo, e por meio da influência da grande literatura e da música, que ele conseguiu se livrar da doutrinação marxista e de suas polícias do pensamento.
Trotskistas, maoístas, comunistas zelavam, ainda nos anos 1980, pelo fantástico mundo das crenças, pelos credos de partidos e facções.
Houve o tempo do “realismo socialista”, do desprezo pela “arte burguesa”, dos mestres do pensamento entronados no Olimpo francês.
E tudo pra quê?
Para o pobre do Molina se surpreender, depois de tantos anos,
“(...) que em pleno costume da liberdade, se voltem a julgar as obras de arte em virtude de critérios e catecismos ideológicos, se imponham novos anátemas, os comissários políticos se tornaram tão eficientes. De novo a variedade e a riqueza do mundo hão de ser vistas com antolhos mesquinhos e um receituário de abstrações com aparência justiceira e cenho de censura. Do fantasma e da múmia de Lênin ninguém mais se recorda, nem sequer na Rússia. E de novo temos que defender a liberdade radical do espírito criativo, em pleno desfrute fervoroso e gratuito das coisas de que gostamos”.
O Movimento pela Liberação da Beleza defende a liberdade radical do espírito criativo, e a liberdade radical do proveito e da fruição da arte.
Sejamos revolucionários.
Vamos abrir as janelas para a brisa entrar.
E amar as cores e as melodias, amar a invenção.
Não há nada mais nobre .
E desde já o Movimento pela Liberação da Beleza adota como programa a quinta e última estrofe da “Ode a uma Urna Grega”, de John Keats (1795-1821), na tradução de Ivo Barroso:
“O Attic shape! fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form! dost tease us out of thought
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say'st,
'Beauty is truth, truth beauty,—that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.'”
“Ática forma! Sóbria atitude! em guirlandas
De mármore, donzelas e varões enleias
Com ramos da floresta e o joio espezinhado;
Tu, forma silenciosa, abalas-nos a mente
Qual faz a eternidade: ó fria Pastoral!
Quando esta geração o tempo houver tragado,
Tu permanecerás em meio de outras queixas,
Amiga do homem, a quem dirás: “A beleza
É verdade, a verdade beleza” – isto é tudo
Que sabemos na terra e que importa saber.”
Salve e s Saravá!