Capítulo 11: O Disco da Samambaia
"A verdade é que havia pouca oferta de fantasia para nos ajudar a amortecer os solavancos da idade e esbater as contorções da natureza em expansão."
“...Se lembra do futuro que a gente combinou?/ Eu era tão criança e ainda sou/ Querendo acreditar, que o dia vai raiar/ Só porque uma cantiga anunciou...”
Chico Buarque – Maninha
I - Amuado
“Laiá-laiá, pra mim isso nem é música”, detonava o Théo ainda no meio do lado A, Lez e Fau na deles. Anaflor e Claw curtiram, mais ou menos, uma faixa. No lado B a impaciência deu as caras na conversa interposta quando devia reinar silêncio e concentração, como eu quisera. Solapavam meu mundinho e amuado nesta quase noite de sexta-feira eu me desavinha com A Turma. Ruminava desconsolado que ninguém podia mesmo alcançar aquela música, jamais entenderiam o que estava fora da zona morta comum, da vida miúda e autômata de um vilarejo metido à cidade.
O LP da Samambaia era um acesso frágil, transitório e alternativo a um universo paralelo a Senhora da Primavera, a alguma, não sei se posso chamar assim, poesia, e satisfazia uma carência que aumentava disfarçada e sorrateira, como gravidez indesejada. Algo começa a se definir, sem que eu me desse conta, durante a travessia para onde a vida demandava, além de tudo mais, um tiquinho de invenção e sortilégio. Não havia mais jeito de desfazer encanto nem desencanto. Eu podia regressar e reencontrar minha gente. Mas não seria mais o mesmo, nem eu nem ninguém, como um viajante espacial que regressasse à Terra depois de ir longe demais. Alguém se havia consigo para se remoldar a uma esfera de onde não quisera ter saído e recuperar a fluidez que define a intimidade com pessoas, coisas e cores de um círculo. Eu me sentia estrangeiro no meu próprio canto.
Para disfarçar o dissabor, bebia e fumava, furioso, afetava uma rebeldia romântica de moço avulso, provinciano extraviado, ares de importância. Amargara pela primeira vez a ilusão de que é possível transmitir a felicidade a outra pessoa, e que um ser humano pode realmente entender outro ser humano. Como, se não compreendemos a nós próprios? Me estranhavam. “Tá com ovo virado”, caçoava o Lez, “Deixa ele quieto”, apaziguava a Maluá, “Isso é coisa de veado”, o Fau repetia o velho bordão.
II – Uma ereção
Quase não havia livros em nosso barracão de fundos atrás de um prédio de apartamentos. Tampouco no ginásio onde estudara, na periferia rural de Primavera, a proteína da literatura reforçava nossa dieta além do sopão servido nas escolas pobres. Não associo a figura de nossas professoras – ali só havia professoras, pobre delas – a livro algum. Éramos moços rudes, ainda meio assombrados pelo sexo, inquietos com a presença das meninas na primeira turma mista do instituto, aquele tempo.
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