Capítulo 12: do Boi
"O estrondo de fogos contra o céu de fevereiro em segunda salva era senha que se ouvia, típica como o apito da fábrica, terceiro sinal. O Boi já no engate soltava amarras no porto e lá vamos nós."
Portanto, peço-te aquilo/ E te ofereço elogios/ Tempo, tempo, tempo, tempo/ Nas rimas do meu estilo/ Tempo, tempo, tempo, tempo — Caetano Veloso — Oração ao Tempo
Chegoou... a tuuurma... do funil... todo mundo bebe... mas ninguém dorme no ponto... — Mirabeau, M. de Oliveira e Castro – Turma do funil
Primeiro: o Boi veste black-tie
Limões amarelos sobre toalha branca, açúcar, gelo e vodca. Solícita, minha gente atua como contrarregra entre bastidores e palco. Em pé à mesa, o Almirante, nosso barman convidado, apronta coquetéis; dona Dora cobra pedágio em outra golada. Ao largo, sobre uma poltrona vermelha estropiada, ainda em regata e jeans, se escarrapacha Lez. Folgadamente deixa-se maquiar pelo Vadinho, a lhe besuntar sem pecha, assistido pela Beira-Mar, que se desdobra nas honras da casa. Camadas de ruge e sombra cor de abóbora moldam-lhe as bochechas e os contornos dos olhos oleosamente castanhos.
No que restava de espaço na pequena área de serviço já no quintal, marmanjos aguardavam vez no salão de beleza. O ar é pleno de risadas, fumaça e exalações etílicas, o que nos elevava a moral na iminência de travarmos mais uma épica e decisiva batalha pré-carnavalesca.
A solenidade do Boi da Manta ordenava grande gala, não menos. O longo verde-água com vieses e babados — um dia glória de uma irmã-miss — a pender no varal é reservado ao Théo; o preto de cetim com transparências em organza e strass no contorno do busto, ao lado, espera o Mi; já o branco de cetim com tramas de paetê no decote vestirá o Lez, como a saia godê madrepérola, desta feita e por fim, bem, ao primeiro que a reivindicar.
O Fau adere à bulha e no Boi corrente faz de conta que é consigo, agora ou nunca, vocês vão ver, saio no peito e na raça. Duvidávamos. No ombro do parrudo e redondo Quel, cuja virilidade em guarda não ia folgar em sexta-feira santa de Boi — nada de frescuras com ele — descansava a máscara cortada no que fora uma fronha, a lembrar o capuz do verdugo, ele já metido em botinas e túnica de um lençol branco que lhe servirá de abadá.
A um passo do quintal, no lusco-fusco, três doses a menos e expectativas demais sobre outro desfile do Boi, de repente eu alçava longes e ontens no vale de uma ternura malsã. Tentava fixar o quadro fluido que se desenhava contra minha vontade e, em vão, espantar a turbulência de uma frente fria a chegar a alma. Alheio ao rumor festivo ao redor, derivava para a imagem tantas vezes repetida de um fícus que dominava a paisagem em frente à nossa casa, à janela do meu quarto, uma montanha escarpada que ascendia desde a linha férrea e limitava a noroeste a zona urbana da cidade; revia o pôr-do-sol como quem assiste a um funeral; àquela luz sanguínea que banhava a cidade em restos violeta correspondia um silencioso réquiem que a todos que cruzavam minha rua, dentro e fora, conferia ares de quem se vê à beira de um penhasco. Pesaroso, sentia a noite aos poucos ocultar a árvore imponente, prenda de viagem, e via minha própria figura se esvair na moldura da janela imaginada. O Gregório Alfaiate, nosso vizinho, que há pouco julguei ter visto passar, teria alcançado a esquina oposta. Então, como desterrado de um instante, matutava a crença desse velho, ou sua pitoresca filosofia, propalada por um amigo que está para chegar à coxia. Pois não seríamos atores inconscientes a representar o azar o drama de um sonho abandonado pelos deuses? Como explicar a fatuidade da consciência à qual se reservam, do início ao fim, tanto assombro e medo? Qual o sentido de subsistir na ponta aparente de uma dezena de bilhões de anos-luz e fósseis estelares — pó senciente tocado a esmo na estapafúrdia grandeza do Cosmo? Por que, diacho, essas nuvens densas a cobrir minha fantasia, a fazer chover no meu piquenique, essa ideia de amanhã que recapturava a um tempo cinzas da infância e saudades do que acabava de ser? Acaso não era Carnaval? Era nosso derradeiro Enterro do Boi e, não supunha, também d’A Turma in totum. Era o começo do fim da expansão que dura a embriaguez do ar puro, envenenada, é verdade, por atrozes hormônios, mas que desfrutamos como vera, vida alcançada e esperança encarnada, veios de ouro, céu azul.
Nada, arre, bestagem, meros cumulonimbus que uma talagada ou duas podiam espancar. Eu procurava sair daquele beco, duvidoso, como o criador precoce de uma biografia imaginária que buscasse fixar a cena de uma paisagem que começa a dissolver. “Mais uma, Almirante”, eu recorria, “capricha aí”, a tentar me recompor e recobrar o ânimo para voltar à ebuliente cena do Boi, e assim logo me vi, quando já me olhavam torto, a marcar na palma da mão um samba do Martinho que era nosso patrimônio comum, a convocar um coro...
Vamos renascer das cinzas
Plantar de novo o arvoredo
[...]
Sambar na avenida
De azul e branco
É o nosso papel
Mostrando pro povo
Que o berço do samba
É em Vila Isabel
O pé descalço do Lez, já de peruca, quase tocava o rosto do Quel, sentado ali perto no passeio, e por pouco não raspava o bigode ancho sobre a barba cerrada do amigo, em contraplano ao risonho Théo, então na bica da faculdade de engenharia, já aflito, a nos apressar com seus olhos cor de menta bem abertos, talhados num rosto ósseo de expressão sempre amistosa, no alegro majestoso com que se punha na vida, reto, afeito a muita ação e pouca cisma.
Dentro dum baby-doll cor de pêssego com um rasgo lateral, brilhos e exageros de batom vermelho na cara, além de carretéis à guisa de brincos e limas colhidas no quintal a rechear o bojo do sutiã, o candidato à filósofo Mariozinho Saracura surgia dos fundos neste instante, previamente calibrado para a bacanal. O Saraca, o guardo bem, cabelo amarelo crespo queimado, rosto vivaz, algo estrábico, dentes tortos, fora inspirado por um mestre da nossa província, nosso conhecido comum, referido Gregório Alfaiate, pensador autodidata nas horas vagas, beberrão de uma figa e vida, de quem iria comungar da doutrina fatalista segundo a qual a humanidade é fruto de um sonho divino em sua eternidade que se transformara, por obra do acaso, em pesadelo autônomo à deriva, durante o continuum que chamamos tempo.
Logo atrás, à paisana, tenazmente sóbrio, condição que lhe era suficiente para desfilar muito bem no Boi, chega alvoroçado um contraparente do Lez que tratávamos por Liza. Ele diz ei, ei, ei e vai logo se entendendo com a dona da casa. Pode pegar o abajur malva rendado que pertencera ao quartinho da neta e se achava ali esquecido sobre guarnição da mesa de passar, hora convertida em bar? Pois sim, como não, é seu, autoriza a Dora. E o observo testando a luminária na cabeça, movendo a arandela até achar o melhor ajuste da peça coberta de rendas — pronto, o menino tinha passaporte para o cortejo fúnebre do Boi da Manta, festa maior de Senhora da Primavera.
Inquieto porque ainda não tivera hora na cadeira do Vadinho, o Théo vai correr ao portão para auscultar melhor a rua e tomar o pulso da bandalha, cujo alarido na concentração sobre a ponte do ribeirão Matacavalos, depois da primeira salva de fogos, já podíamos ouvir entre um cigarro e uma bebida.
Na volta do Théo, o Quel se metia na fila improvisada na cozinha e tomava do Fau, e este já do Mi, a vez de atacar na fonte a forração de um tropeiro dadivoso, regalo da anfitriã, e servir-se em grandes colheradas na palma da mão. Chegava a hora.
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