...Não guardo segredo mas sou bem secreto, sou bem secreto/ É que eu mesmo não acho a chave de mim...
Abel Ferreira e Fagner – Sangue e Pudins
A aspereza aveludada do linho branco só era superada em beleza pela alvura da blusa escolar engomada e bem passada pela mãe à noite, na véspera de um primevo Sete de Setembro. A trama do tecido reluzia suavemente, enquanto eu me sentava na mureta, em frente à cantina.
Eu vivia ali uma espécie de ressuscitação, e aos poucos procurava me recolocar no mundo. Havia experimentado outra vez um tipo de colapso que ainda se repetiria em anos vindouros, durante todo o curso universitário.
Ao tomar o ônibus até a capital, às cinco horas da tarde, logo nos primeiros minutos da curta viagem eu costumava adormecer profundamente para despertar, já próximo à rodoviária, com uma terrível sensação de abandono, quase como se não soubesse mais quem era, ou como se houvesse perdido o sentido de estar ali, dentro de um ônibus e, ao descer na estação, ter de tomar o lotação que me levaria até o campus e participar dos rituais cretinos da sala aula ou do laboratório, ter de me concentrar na lição de um mestre e de conviver proximamente com dezenas de pessoas de quem mal sabia os nomes, e examiná-las, às vezes uma a uma, nas cadeiras ou bancadas ao lado e à frente, e deparar um arco de caracteres que ia do tímido ao simplório e ao arrogante, do tolo ao exuberante, da feminilidade contrariada à mais sincera máscara da luxúria. Pai, se fora possível afastar esse cálice... Era a frase que recordava com frequência, enquanto me debatia no limbo, entre o sono e a vigília.
No entanto, os fluxos da cidade, o tráfego humano e o fedor das ruas logo me forçavam a sair do torpor daquela espécie de morte, e recobrar algum ânimo para seguir o roteiro que então me parecia a mais sólida e infame das rotinas, a qual, afinal de contas, havia sido livremente almejada e conquistada, ou não?
Mas ali, agora, ainda não completamente refeito, o prazer de vestir a camisa de linho branco que pertencera ao irmão, de alguma forma fazia com que eu já não me importasse de estar longe e alheio a todos, distante da comunhão que percebia na conversa das meninas, na camaradagem entre dois sujeitos de óculos e barbicha e nos casais de namorados arrulhando ao largo. Que importava tal fardo enquanto a luz filtrada era rebatida pela camisa branca de mangas curtas que usava, e que havia herdado do irmão, enquanto todas as coisas deixassem de responder pelo que eram? Pois bastava olhar na direção do horizonte moribundo que oscilava entre o róseo e o violeta para achar uma compreensão da inutilidade de tudo, do vácuo que sobrevém à nudez do hábito, e sentir uma aproximação mais viva, elevada e natural que a daquele burburinho de autômatos a gozar a idade do ouro.
Então, ao tentar prolongar meu estado de onipotência poética para dentro da tarde, notei que abaixo no jardim e à frente do oratório, bem no fundo do pátio, surgira o rosto familiar de Rodião, muito alto e magro, barba de uma semana, Bamba de cano alto, jeans pálidos de todo dia e uma simples camiseta escura. Lá estava ele, conversando com a moça de vestido malva, a quem iria dali a pouco me apresentar e que, pensava, bem podia ser minha namorada.
Ao vê-lo, logo abandonei o estado de ilha em que procurava me encerrar para me pôr a salvo. Pois Rodião era uma descoberta, terra à vista do continente a que uma amizade se equivale para sempre, ou assim tentamos crer. Nós havíamos nos conhecido no dia da matrícula, quando éramos os últimos a penetrar o guichê onde se entregava os papéis, antes de irmos ter com o diretor.
Rodião pediu-me que descesse, então nós e a estudante de vestido malva nos pusemos a conversar, e eu já me via inteiramente reposto ao ambiente, acreditava, e até podia trocar um ou outro aceno, pronto para enfrentar a primeira aula.
Por deus, estava mesmo me sentindo confortável naquele final de tarde, e a camisa branca de linho, que ainda guardava em si emanações arroxeadas do crepúsculo, era uma espécie de salvo-conduto para minha integração à comunidade. Contudo, bastava tomar-me a sombra desse mínimo de euforia com o bem-estar que em tudo contrastava com o que vinha sentindo, para receber a fisgada da ameaça de que um novo trespasse me poria do lado de fora do amálgama verdadeiro que eu sabia chamar-se realidade. Então, a lutar para que tal não sucedesse, eu tentava fixar o movimento das árvores lá fora, além dos vidros das janelas, e me transportar para o interior do bosque, até os limites do campus.
Haveria um futuro, por certo, para além da hora azul, e quem sabe a noite pudesse acolher seu embrião, e logo começar a gestá-lo para os dias claros que viessem. Haveria o amigo Rodião, a moça de vestido malva, os livros, todos os livros, e as viagens com que sonhasse. Eu me aferrava a essa crença como quem se agarra ao mistério e tenta viver em paz.