Capítulo 9: Sábado (choro-canção)
"Depois disso o irmão segundo se punha a esticar o tempo, antes de se dar ao ritual do pré-namoro de sábado, ou estando nele já imerso."
Hoje é sábado, amanhã é domingo/ Amanhã não gosta de ver ninguém bem/ Hoje é que o dia do presente/ O dia é sábado.
Vinicius de Morais - O dia da criação
I
“...E nos espaços serenos/ sem ontem nem amanhã/ dormir nos braços morenos/ da lua de Itapuã...” Depois, ao acordar de um sono transbordante que me saturava de torpor, quis ir a pé à cidade baixa. Logo, uma Belo Horizonte madura e adorável surgia à flor do tempo, conforme a reencontrava, sobrenadante.
Ao vagar por tais sobras e sombras, ao percorrer velhas ruas nesse dia livre, cuidava que as eras contidas na existência de uma só pessoa — vela breve, sombra móvel... — podem figurar tão remotas quanto uma estrela que morreu — estrela que, ao menos, se deixa estar e saber em ondas, aliás luz ou partícula. Agora, se um aparelho consegue captar certa pulsação do cosmo e refazer a integridade de um objeto, um buraco negro, um quasar, uma pessoa, coitada, não pode sequer conceber, em real medida, a intensidade da energia que absorveu, e refletiu, no esplendor de seu próprio mundo figurado — quando a natureza a iluminou e iludiu, radiante. Mas, claro, a memória, pura e simplesmente, é permanência, renascença do que morreu, e sendo assim é a mais genuína expressão de uma raça de mortos-vivos, ou, quem sabe, só a manifestação da tal matéria do sonho cercada de sono, matéria de que somos feitos, no dizer do poeta. Mas, sim, ai de nós, ainda cabe tentar recuperar o vivido, resta amar o perdido, seja como for, resta amar a beleza que escoa, sina a que se entrega a vida no saldo — e deixa confundido este coração, consoante dois poetas franceses e um itabirano, como se sabe.
Aos poucos, como o sol morno de maio me revigorasse, prossegui, então, até encontrar as lojas Americanas, a descortinar o comércio espectral que ainda se praticava na Inglesa Levy e na Bemoreira-Ducal, depois de driblar como um atacante ondulações de criaturas, vivas ou mortas, que se adensavam, à frente. Logo, no quarto andar da Mesbla, onde entrei, como me cabia, chegava à seção de discos dedicada à antiga música popular — a música que havia nos alegrado e moldado sensações no tempo. Fui, então, varejar velhos álbuns, quer dizer, remexer na mesquinha contrafação imposta pela técnica, disperso como estava numa espécie de cruzamento.
...Nossa famosa garota nem sabia/ A que ponto a cidade turvaria/ Este Rio de amor que se perdeu/ Mesmo a tristeza da gente era mais bela... Qual menino com suas bolinhas de gude, ao bulir na trastaria em eterna promoção deparei naqueles fins de tempo, o CD que transpunha fajuto o que havia sido um dos long-plays favoritos na casa familiar, a ponto de marcar (demarcar) nossa vida e nossa história no final dos anos 1970, portanto um tesouro, que havia se perdido, depois de cada um de nós achar seu rumo, e há muito eu não acessava (isso, cá entre nós, leitora, entre parênteses, foi muito, muito antes... vá lá, um tanto antes de se impor a música a granel, picada, utilitária e anônima, antes da mais recente transformação, antes de termos, maiormente amálgama ou entulho, e a mero roçar de dedos, toda a música já feita na Terra, inclusive a panóplia autoral dos celebrados compositores de silício que viriam a dominar o mercado editorial e das artes e suplantar amplamente os criadores endotérmicos). Mas, à parte a redução que refletia o espírito da técnica desencantada (deixamos de lado, rogo, o streaming e a fruição do fluir) ao agarrar a pequena peça retomei e revolvi a imagem mais nítida já obtida e divulgada de um berço estelar cuja luz viajara centenas de milhares de anos até chegar à lente do telescópio X. Abismava-me, como disse, o enigma do tempo, ao tolamente associar os confins ultragelados do Cosmo à frágil e mortal redescoberta ao acaso dum álbum de música, se bem que nem tão velho assim, ainda que igualmente remoto ao coração.
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