“Ê, ê, mundo dá volta, camará”
Obras-primas de Gilberto Gil ajudam a pensar novas e velhas formas do viver
“Se oriente, rapaz [...]/ pela constatação de que a aranha/ vive do que tece/ vê se não se esquece... pela simples razão de que tudo merece/ consideração [...]”.
“Oriente”, canção de Gilberto Gil
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Para o doutor Paulo José Ribeiro Teixeira, compadre, grande admirador/conhecedor da obra de Gil
Caminhadas longas e canções liquidificam melancolias.
Adicione-se uma gotinha de esperança.
Processada, a melancolia — palavra enraizada no grego “bile negra” — desnatura, como o leite talha no meio ácido.
É bom aproveitar esse momento de abertura, lucidez e apaziguamento.
É hora propícia pra bolar algo que alegre.
Um projeto, uma máquina, um algoritmo, uma casa, um artefato, um poema, uma canção, um ziriguidum.
Despenquei sem rumo das encostas da Serra do Curral, like a rolling stone.
Só parei de rolar ao me achar no Parque Municipal, como um pombo que voasse de volta pra casa.
Tudo ali me é familiar, quase que cada árvore, arbusto e canteiro de flores;
Como a fauna humana.
São desportistas, aposentados, obrigados a andar por ordem médica, desempregados, bêbados, sem-teto, transtornados, invisíveis, como se diz hoje.
Invisíveis até para o pastoreiro laico dos rebanhos do diversidadismo (se posso inventar uma palavra para certas tendências do marketing contemporâneo).
São namorados, casaizinhos gays — que parecem se sentir protegidos no parque, e uma moçada a cabular aula.
É a gente pobre ou remediada, em dias de folga ou férias, com filharada, em piqueniques nos gramados, a rodear o sorveteiro, a rodar no carrossel e em outros brinquedos do arco da velha.
Burgueses, como tascávamos os membros mais caretas da classe média, são raros.
Devem achar, como o pessoal do velho “Pasquim”, que sociologia tem hora. Não sabem o que estão perdendo.
Claro, ainda falta muita árvore para juntar à minha patota, a meus contatos arbóreos de primeiro grau.
Pois nessa inopinada descida ao parque, já de tardinha, deparei uma carolina, perto da Praça do Sol, ali chamada munguba — além do normativo Pachira aquatica.
Não é que ostentava flores? (de pétalas brancas e longos estames cor de vinho) ao passo que minhas carolinas, isto é, de minha rua, vão plenas de frutos maduros, em “suas cápsulas lenhosas pubescentes”, conforme um site.
Pensei na assincronia da espécie e na exuberância de nossos biomas corrompidos.
Daí na própria assincronia humana de fundo.
Assincronia em relação a amigos, a quem amamos, aos filhos e tudo, a nós próprios e até aos deuses e orixás, não duvido.
É difícil acertar os ponteiros com o outro, o que não tem nada a ver com viver ou conviver mal.
Mais que difícil, a coincidência de fusos interpessoais roça o intangível.
Temos relógios internos que andam mercê da incerteza e do tempo e ainda obedecem a alguma lei da relatividade geral do ego e do desejo.
Mas, por mais raras que sejam, ocorrem, sim, concomitâncias.
E ocorrem “coisas anormais/ como alguns instantes vacilantes”, de que fala um verso de Gilberto Gil em “Retiros Espirituais” (“Refazenda”, 1977).
Essa raridade, como a vejo, é uma mina sem minério, carne sem carne, cujas sombras rebrilham em nós por muito tempo, até um dia, e que justifica a vida.
*
A assincronia também é fenômeno cultural e histórico.
Que se amplia na nova ordem do mundo.
Não somos mais regidos pelo tempo analógico, que era marcado pelos sinos das igrejas e relógios de pulso.
Quem já viveu um tantinho não pode negar que tudo transcorria e se transformava mais devagar.
Acabei de citar outros versos de Gil, patrono deste Escrevidas.
Gil é um poeta sábio, sabe-se. Em “Tempo Rei” (“Raça Humana”, 1984) ele dá um flagra na permanência do tempo,
“Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos”
Por essas e outras, com a derrota da União Soviética na Guerra Fria, ele não embarcou na euforia com o que seria o “milênio” da democracia liberal.
Rebateu o fuzuê em torno do livro de Francis Fukuyama, “O Fim da História e o Último Homem”, em geral (mal) interpretado como um canto às glórias do capitalismo.
“Parabolicamará” (1991) traz o xote “O Fim da História”, apimentado pelo baixo elétrico de Rubão Sabino.
Era pra Fukuyama tremer nas bases — ou se sentir lisonjeado por inspirar uma canção com tremenda pegada poética.
Não é toda hora que um poeta e compositor converte “nunca mais” em “nunca é demais”,
“[...]
É como se o livro dos tempos pudesse
Ser lido trás pra frente, frente pra trás
Vem a história, escreve um capítulo
Cujo título pode ser: nunca maisVem o tempo e elege outra história
Que escreve outra parte
Que se chama: nunca é demais [...]”
Seja como for, volto ao ponto: tudo vai transcorrendo e transformando no tempo digital, binário, que nos suga feito esponja.
Desaparece o intervalo entre as badaladas do sino.
Some o silêncio. Vive-se o ultra e o pós-ultra.
O tempo digital impõe urgências e o que delas decorre — eficiência, perfeição, entrega existencial — e todo um modo de viver.
Parodiando José Ortega e Gasset (1883-1955) batido no mix com Renné Descartes (1596-1650), agora eu sou eu e meu celular, e se não o consulto a cada instante, não existo.
Pode até parecer que de um jeito ou de outro temos de nos adaptar à mudança, depois que o aparato técnico se converteu no cordão umbilical que nos prende ao mundo.
Que tudo segue como deve ser em propostas e propósitos.
Darwin explica — não mais Freud invocado no botequim.
Ou melhor, o tal darwinismo social “explica”.
O que fica pra trás na corrida pela vida perde o passo da “evolução” do “progresso”.
Não dá conta de atender às “entregas” das mediações algorítmicas.
O que essa “evolução” deixa pra trás não serve nem pra reciclagem.
Não há sustentabilidade que dê jeito no rejeito humano.
*
Sim, há muita gente meio fora de órbita, desnorteada com os choques das marés do tempo.
Colocados e deslocados, normalitos e angustiados, melancólicos e esfumaçados, estamos aí.
E cada um de nós sabe o que leva no peito e como navega.
Navegamos mesmo em todos os sentidos no tempo e no espaço — em velocidade de dobra, pra lembrar “Jornada nas Estelas”.
Vivemos mais e envelhecemos mais depressa.
Vai daí, quem sabe, que correções estéticas já são feitas antes dos trinta anos.
*
O moço octogenário Gil, que vem ao mundo em Salvador, Bahia, a 26 de junho do ano da graça de 1942, tem outra obra-prima sobre o tema.
Para mim é algo como uma canção-livro.
Sua escuta e leitura ajudam a pensar na aceleração do tempo e na diminuição do espaço, com as novas formas de viver.
Mostra por que Gil é a mais potente “antena da raça” a serviço da moderna canção popular brasileira.
Um verdadeiro radiotelescópio entre nossos cantautores.
Capaz de antecipar e interpretar mudanças em suas canções filosóficas, em seu “filosofar popular”, como ele diz.
Como alguém pode não se constelar com “Parabolicamará”, faixa-título do álbum citado, que é dessa música que se trata.
É tão cheia de beleza e consolação que ainda hoje me leva a um que outro arrepio. Segue a letra na íntegra.
“Antes mundo era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena parabolicamará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camaráAntes longe era distante
Perto, só quando dava
Quando muito, ali defronte
E o horizonte acabava
Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camaráDe jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnaçãoPela onda luminosa
Leva o tempo de um raio
Tempo que levava Rosa
Pra aprumar o balaio
Quando sentia que o balaio ia escorregar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camaráEsse tempo nunca passa
Não é de ontem nem de hoje
Mora no som da cabaça
Nem tá preso nem foge
No instante que tange o berimbau, meu camará
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo da volta, camaráDe jangada leva uma eternidade
De saveiro leva uma encarnação
De avião, o tempo de uma saudadeEsse tempo não tem rédea
Vem nas asas do vento
O momento da tragédia
Chico, Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino apresentar
Ê, volta do mundo, camará
Ê, ê, mundo dá volta, camará
Mesmo a assincronia das carolinas do Belo regula-se no correr das águas do rio-tempo — aliás (só conto para quem me leu até aqui), descobri que elas frutificam e floram a um tempo, com lindas flores “solitárias”, conforme a botânica.
Uma onda luminosa circunscreve a terra enquanto Rosa ajeita seu balaio.
Mas da jangada ao avião de carreira não se passaram nem cem anos, meninas e meninos.
E tantas trincas na histórica provocaram uma grande perturbação.
Podemos levar uma eternidade ou encarnação para tirar algum sentido de como a coisa vai transcorrendo e transformando do jeito que vai.
Se rezar ajuda, rezemos, com o breviário de “Tempo Rei”,
“Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei”
Mas podemos levar uma eternidade, ou várias encarnações, e seguir sem entender bulhufas.
Sem falar que “tudo pode estar por um segundo”.
Sem falar que “não restará nem pensamento” — esse “fundamento singular do ser humano” — se nem “Pães de Açúcar/ Corcovados/ Fustigados pela chuva e pelo eterno vento” resistirão ao tempo.
*
Fora do tempo, além do tempo e do espaço, regem o absoluto, o absurdo, o mistério, o desconhecido, conforme.
A obra de Gil também explora essa escuridão.
Fora do tempo, além do tempo, há o encadeamento e o empilhamento de nadas (treze ao todo) do final de “Se Eu Quiser Falar com Deus” (“Luar”, 1981),
“Que ao findar, vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada”
Fora do tempo, resta, talvez como redenção, a “cicatriz na pele do futuro”.
É o que sugere a letra de “Viagem Passageira” — canção dada por Gil a Gal (1945-2022) e que apenas ela gravou, em 2018.
“[...] O sonho é ter tudo dissolvido
O corpo, a mente, a fonte da lembrança
Enfim, ponto final na esperança
Somente as ondas soltas no oceano
Não mais o esperma e o óvulo da morte/
Não mais a incerteza do binário
Um tempo liso sem o fuso horário [...]”
*
Ainda na década de 1970, Gil põe na melodia uma posição política sobre o acesso democrático aos avanços tecnológicos.
É o assunto de “Queremos Saber”.
“Queremos saber
O que vão fazer
Com as novas invenções
Queremos notícia mais séria
Sobre a descoberta da antimatéria
E suas implicações
Na emancipação do homem
Das grandes populações
Homens pobres das cidades
Das estepes, dos sertões [...]”
Há gravações de Gil e Erasmo Carlos, ambas nos anos 1970.
A mais linda chega mais tarde, em 2001, no álbum acústico de Cássia Eller (1962-2001).
Em 2024 seguimos querendo saber daquilo tudo e muito mais.
Queremos saber quando “homens pobres das cidades/ das estepes do sertão” receberão os modernos tratamentos contra o câncer —
Certas terapias que empregam bioengenharia;
Certos remédios desenhados com as novas ferramentas de edição genética.
Queremos viver “confiantes no futuro”.
Queremos acreditar que a inteligência artificial não destruirá a humanidade — “pois se foi permitido ao homem/ tantas coisas conhecer/ é melhor que todos saibam/ O que pode acontecer”.
A internet, que nasceu como nova Renascença, plena de promessas de esclarecimento, deu no que está aí.
Até agora trouxe mais trevas de incompreensão que luz de entendimento — “por isso, se faz necessário/ prever qual o itinerário da ilusão/ da ilusão do poder”.
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