E o que eu não sei mais
“Num lote digital com dez de frente e dez de fundos tento construir minha maloca no Substack”
Leitora amiga, amigo leitor, bem-vindos a bordo.
A pitoresca newsletter Escrevidas precisa da sua força.
Aqui na redação me desdobro para produzir semanalmente algo melhor e relevante.
Tento convencer quem possa, quem tenha meios, a contribuir com meu trabalho, como assinante pago.
Obrigado a todos pela leitura.
Amanhã não estarei mais ao pé dela.
Nesta quinta-feira, pela última vez, antes do café, subirei para um figurado cumprimento, a ver como sua esplêndida copa, sua excelência, sobranceira às plantas na varanda e à própria construção, reage ao vento e à luz do novo dia.
Uma última vez, por certo, a encontrei serena, indiferente à rotina da rua e aos ruídos da cidade, também às pipas e linhas que ela não para de sugar e consumir em seus refolhos.
Seus galhos hospedam trocais, sabiás, bem-te-vis e passarinhos outros cujos nomes nem sonho; à noite, se tornam estação de trânsito para os morcegos, bem como mirante estelar.
Passamos aqui, sob seu influxo, o (suposto) inverno tropical.
Por minhas contas, o inverno, no Belo, durou quatro ou cinco noites alternadas, e neste fim de agosto já entrega o turno à primavera.
Ela nos sombreou, refrescou e arvorou, neste sentido que o Houaiss assenta: “(...) deslocar (algo) para ponto mais elevado; elevar, levantar, erguer”.
Sei que ela me inspirou, pacificou, distraiu, alentou, encantou. Disso eu sei.
Também chamada, sei que me repito, castanheiro-das-guianas, castanheiro-do-maranhão, castanhola, ebiratanha, embiruçu, munguba, sapote-grande, a carolina, em seu verdor e permanência, é um lastro no real, um descanso da fantasmagoria algorítmica.
Eu a fotografei na primeira luz da manhã, antes do meio-dia, à tarde e à tardinha, como um impressionista vadio e tardão.
Mostrei-a no Escrevidas em flores e frutos simultâneos, um prodígio dessa espécie, a Pachira aquatica.
Cortejei-a em minha escrita e dela cuidei, em cumplicidade com leitores, nessa espécie de regar junto que é ler e escrever, escrever e ler, com palavras que almejam encontrar nossas raízes d’alma.
Fiz até um videozinho de um periquito, exemplar do bando que se refestela em sua fartura, capaz de bicar seus frutos lenhosos até alcançar as preciosas sementes amanteigadas. Sim, amanteigadas, digo por ter provado.
Os três registros dessa página, noturnos, foram tomados na noite de quinta-feira passada.
Um tributo e uma cerimônia de adeus a minha carolina.
No sábado à noite, pusemos a mesa ao resguardo de sua copa e jantamos uma pizza em companhia de amigos há muito cúmplices em ocasiões assim.
Quando, em março, viemos conhecer este apê provisional, foi ela, carolina, a capturar minha atenção, além da trivialidade das convenções sociais, e me ensejar boas-vindas.
Mas é hora de voltar pra casa.
Hora de deixar a carolina, com votos de que os próximos moradores saibam apreciar sua real grandeza e dela também desfrutar.
Hora de remudar.
Hora de redescobrir as carolinas da minha rua, que também as temos por lá; há muitas no Belo.
Levará algum tempo.
Uma árvore é e não é igual a outras da mesma espécie, e nos apegamos a umas mais que a outras.
Como apenas nós, seres humanos, temos uma consciência, diria o filósofo, do que “há” no mundo, e com essa questão nos batemos até o fim, podemos criar laços, podemos nos apegar, em indizível intimidade, com as coisas — sejam ou não animadas, a começar da natureza.
Somos, se bem nos entregamos à vida, e damos os saltos que a vida propõe, capazes de criar tais vínculos.
Vínculos, como os aqui também confessos, com Yanipab, nosso jenipapeiro, marco familiar na Estrada do Diamante, e a Pedra do Remanso.
Apreciar uma árvore é uma maneira de creditar à existência, ao ser, como disse, o valor que tenha, que tenhamos, e também de nos consolar de dissabores com a crueldade do mundo, e com a indiferença diante da crueldade do mundo.
Você precisa saber da carolina, leitora amiga, leitor amigo, precisamos todos.
De escrever isso, e ao titular a coluna, já me apropriei do verso de “Baby”, a canção de Caetano Veloso que ele e Gal (1945-2022) gravaram em faixa do LP “Tropicália ou Panis et Circenses” (1968) .
Em “Baby”, Caetano cita a “Carolina” de Chico Buarque (LP “Chico Buarque de Hollanda, Vol. 3”, 1968).
E Caetano interpreta “Carolina” no seu próprio vinil de 1969.
São canções que se entrelaçam, de estranha simetria; um compositor na sua — a lira romântica — outro na dele — a lira tropicalista e modernista.
Em ambas, um e outro poeta “aconselha” ou “orienta” alguma moça, Carolina e Baby.
Nas duas canções há uma conversa sobre a passagem do tempo, em uma é o tempo transcorrido, na outra a sintonia com o presente.
Um trechinho de “Baby”:
“Você precisa saber da piscina
Da margarina, da Carolina, da gasolina
Você precisa saber de mimBaby, baby, eu sei que é assim
Baby, baby, eu sei que é assim [...]Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais [...]”
“Carolina” de Chico também me diz algo da minha carolina.
Uma passagem:
“Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo [...]Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
E só Carolina não viuCarolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe [...]
Eu bem que avisei, vai acabar
[...]Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
E só Carolina não viu [...]
Minha carolina não guarda dor alguma — ainda não enlouqueci completamente.
Ela é pura vida resoluta, vida inequívoca.
Se todo mundo sambou, se uma estrela caiu, se nosso barco partiu, nada disso é da alçada vegetal.
Mas me debruço na janela da Carolina buarquiana, e no tempo que ela, tristonha e ensimesmada — não viu passar.
E me debruço na janela-para-o-mundo que me foi aberta pela carolina nesses últimos quatro meses.
Vi muito bem o tempo passar nessa janela, e como esse tempo passou, já, tão depressa, a lembrar o “cinema transcendental” de “Trilhos Urbanos” (Caetano Veloso, 1979).
Escrevi meus textos (escrevidas) diante de sua copa, e com essa vista procurei me acalmar, temperar e me alentar; procurei achar a frase certa e a palavra justa, o que raramente consegui.
E busquei compartilhar essas sensações com você, graças ao milagre da língua.
O Escrevidas, você precisa saber, é meu pequeno e único terreno digital, aliás o único que tenho, e nem declarado à Receita ele é, e a atividade profissional, sim, profissional, que me restou.
Para mim, acho até, é um “lindo lote” — “dez de frente e dez de fundos” — onde tento construir minha maloca no Substack.
Me inspiro agora, claro, no Adoniram Barbosa (1910-1982) do samba “Abrigo de Vagabundos” (1974).
A propósito, ali na pinta, na batata, o Escrevidas é ofício de um vagabundo.
Vagabundo pela errância, pela indolência, pela vadiagem.
O autor é um fadista.
Portanto redigo: você também precisa saber da carolina e da “Carolina” e sempre saberemos de “Baby”.
Oh, baby, (please) stay… by me… Diana... baiana...
Uma entrevista
José (Pepe) Mujica, o ex-presidente uruguaio, deu boa entrevista a Jack Nicas, do “The New York Times” (link para versão em espanhol).
Aos 89 anos, mesmo se sentindo “desfeito” pelo tratamento de um câncer no esôfago, o homem mostra o vigor habitual para ensinar filosoficamente seu modo de vida simples, e expressar seu desencanto com o rumo dos ventos.
Escolhi um trechinho para traduzir que tem muito a ver com a cantilena o Escrevidas.
NYT – Hoje em dia as pessoas leem muito no telefone celular.
Mujica – Há quatro anos joguei o meu fora. Estava me deixando louco. Era o dia todo dizendo besteira. Porque quero conversar comigo mesmo. Aprender a falar com quem trazemos em nós. Foi isso que salvou minha vida. E como estive muitos anos sozinho, guardei isso comigo. [Mujica foi um guerrilheiro urbano e sobreviveu 15 anos em cárcere militar; preso num buraco, travou amizade com um sapo, como conta.] Às vezes ando com o trator. Paro para ver como um passarinho faz seu ninho. Porque ele nasceu com o programa. Já é arquiteto, ninguém lhe ensinou. (...) Admiro a natureza. Quase tenho uma espécie de panteísmo. Há que se ter olhos para ver. As formigas são a coisa mais comunista que pode haver. São muito mais velhas e vão sobreviver a nós. Todos os seres que vivem em colmeias são muito fortes.
2 fatos (culturais) relevantes
1
“Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos” (2024), de Daniela Broitman, que vejo agora no Canal Brasil, é raro e radiante. Amarra uma entrevista inédita de Caymmi (1914-2008), gravada em 1998, com depoimentos de familiares, cenas da Bahia e de filmes caseiros e participações de Gilberto Gil e Caetano Veloso.
O longa se apega à sensualidade que ondula na música e na própria personalidade de Dorival. Também é um retrato acabado de uma felicidade brasileira nas artes, estado de ser de uma cultura que vai se afastando mais e mais no tempo.
Pela primeira vez ouvi Caymmi cantarolar a toada “Sodade Matadera”, ao contar uma apresentação que ele fez, ao chegar ao Rio, procurando trabalho artístico, para um entusiasmado Assis Chateaubriand.
2
Ná Ozzetti é a estrela entre os intérpretes do CD “Chiquinha em Revista” (Selo Sesc), dedicado à obra de Chiquinha Gonzaga (1847-1935).
Os músicos e compositores Gilberto Assis e Ana Fridman realizaram a produção.
Dá gosto ouvir uma nova versão do “Corta Jaca”, com Ná, e releituras de composições de Chiquinha em gêneros originalmente classificados como polca, valsa, habanera, corta jaca, canção cômica, canção, samba-canção e outros.
A maior parte das 13 faixas são de obras pouco conhecidas no repertório da grande compositora, instrumentista e maestrina.
Mas o melhor de um álbum assim, creio, é podermos ouvir — e aprender — o murmúrio dos primeiros regatos que fluíam desde meados do século 19 e já começavam a tributar o imenso rio Amazonas da canção popular brasileira.
*
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!