Enfim é pleno abril
E a luz se fez amarelo-creme | “As estrelas são de lua”, descobrem Ná e Tatit | Vem aí o GPT 5 e o um gosto de obsolescência já amarga a boca humana
Pessoal,
Entrem que a casa é de vocês. Juntos vamos achar a veia da vida e nela injetar uma dose do impossível.
O Escrevidas é uma pizza de palavras — metade ensaio, metade crônica. A fornada sai às quintas-feiras ou a qualquer hora em edição extraordinária.
A farinha da massa é do moinho do jornalismo; nos ingredientes entram música, literatura, cinema, TV, arte, ciência, ideias — e sempre há lugar para o inesperado.
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Para Daniela Paschoal, “norita”
Aos poucos, como costuma ser, vamos nos acercando do apê provisional, enquanto o nosso é reformado.
Aos poucos, tornamos nossos seus recantos e de outros cantos fazemos recantos nossos.
São marcas, níveis, funcionalidades, rotinas, ruídos, desvãos, medos, incertezas, histórias.
Que muita vida deixa-se em qualquer moradia.
E nada escapa ao tempo.
O tempo não nos poupa um milissegundo.
Só nos cabe admirar, pasmos, bestas, as marcas de sua feroz ação corrosiva, em nós e nas coisas.
“Porque, de tão interessante”, nos diz o poeta, “que é a todos os momentos,/ A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,/ A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair/ Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas (...)”.
Mas devagar. Volverei ao poeta e ao poema.
Devagar as plantas também vão se replantando no apê. Rachel é delas tutora atenta e sensível.
Aos poucos, como deve ser, vamos nos pondo na vizinhança.
Devagar um dia vence o outro.
O estranho vira familiar e de repente, zás-traz, voltamos a graduar o cotidiano com o metro do fastio. Mas novos desejos insurgirão.
E de vagar um pouco pelo bairro, que pra nós é bairro novo, amiguei de duas criaturas sublimes.
Me surpreendo muito, e me alegro, de não ter visto aglomerações turísticas em torno delas, celulares em punho para o melhor instantâneo instagramável, e nenhum carro de reportagem.
Não achei notícias de visitas da Unesco em tratativas de conceder às suas nobrezas títulos de Patrimônio Natural da Humanidade.
Varri a rede, recorri ao GPT 4 e nada sobre satélites apontados para o bairro.
Na realidade, sequer encontrei algo que revelasse o interesse dos meus concidadãos.
Falo de um magnificente Fícus italiano na rua Venezuela — eu tenho um fraco por eles, os fícus, você sabe. São uma excêntrica enormidade de vida e luz.
Esse é mais que um fícus, na verdade.
É uma irmandade da espécie, um coletivo, um bosque inteiro representado numa árvore que não cessa de se recriar.
E falo de uma Palmeira real, tão altaneira quando o “Buriti grande” da novela roseana.
A maravilha recebe o visitante como guardião, postado rente à guarita do pequeno Parque Municipal Mata das Borboletas.
O sítio da prefeitura informa que há duas nascentes na matinha, tributárias do Córrego Acaba Mundo. Leio:
“Localizado na encosta da Serra do Curral, [a] vegetação [do parque, inaugurado em 1995] é predominantemente nativa do bioma Cerrado, mas apresenta também espécies da Mata Atlântica. Possui formações de campo cerrado, mata ciliar e campo hidromórfico, e espécies como ingá, pau-d’óleo, cambratá [talvez camboatá, cambará?], sucupira, cedro, aroeira, ipê, bambu de listra, entre outros. A área vegetada é contínua e corresponde a mais de 80% da área total.”
Faço uma primeira incursão na mata, me apresento ao zelador, Reginaldo, e já me abrigo sob a saia verde.
Me recebem uma pernalta sabiapoca e logo fugaz borboletinha, suposta sócia fundadora, minha coanfitriã. Amarelo, laranja e negro encantam-lhe as asas.
Deparar duas árvores como essas, conhecer a Mata das Borboletas, me constela nesta quadra dos meus dias.
Distante do Parque Municipal, e dele saudoso, tenho um refúgio para respirar e botar a cabeça em ordem neste confim da rua Assunção.
Sem falar que na luz de abril, e no azul do céu de abril, há certa doçura que a tudo favorece.
Abril chega com atraso, por meados do mês, sabe-se lá por quê.
Deixamos para trás o torpor de um verão hostil e outra vez desfrutamos de nossa sutil paleta outonal.
Que nestes trópicos não há o exuberante colorido da estação no Norte.
Com a luz escassa, as árvores desse hemisfério vão se despojar das folhagens mas, antes, agonizar lenta, linda e galantemente em vermelhos e amarelos furta-cores.
Lá — simétrica primavera — em abril o sol esquenta e faz ressurgir o que o gelo encobria ou escondia — toda a errância humana.
Derivo, novamente, para os primeiros versos do longo, fascinante e duro poema — duro por difícil — “The Waste Land”, de T.S. Eliot (1888-1965):
“April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.”
Na tradução de Ivan Junqueira (“A Terra Desolada”):
“Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.’
—— O poema de Eliot me segue ou eu o persigo há décadas. Recomendo traduções bilíngues — a de Junqueira (1934-2014), creio, ainda é a mais indicada. Também sugiro o acompanhamento da leitura em inglês — instrutivo sobre ritmo e sentido de partes do poema. Sou fã deste vídeo com Jeremy Irons e Eileen Atkins. Na playlist da edição há o registro de uma leitura introdutória do próprio Eliot.
——
Mas dispomos de uma luz única por aqui, eu dizia.
Nossa luz de abril confere maciez ao verde e renovado gradiente a amarelos, vermelhos e violetas.
Sábado à tarde estivemos numa feijoada em Pedro Leopoldo, burgo vizinho ao Belo, e pude celebrar com amigos no fim da tarde a fresca suavidade da insolação oblíqua, que era de um delicioso amarelo-creme.
Isso me lembrou estes versos de um poeta anônimo:
Abril se revela em luz e
expõe meus mortos morridos
e os morituri que te saúdam.Me alegra no entanto
esta brisa de ouro e palha.
E foi nesse estado ambiental, melhor dizer, anímico, que refloriu a sempre-viva que é “Terral”.
A canção de Ednardo surgiu no LP abre-alas “Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto Na Viagem - Pessoal Do Ceará” (1973).
Me vieram os tais versos,
“(...) Meu céu é pleno de paz
Sem chaminés ou fumaça
No peito enganos mil
Na Terra é pleno abril (...)”
Sim, é pleno abril e tocamos nossas embarcações.
Abril tem uma etimologia fantasiosa e bonita. Podia significar “a terra se abre e se amacia”, aprendo no Houaiss.
Mas não se pode levar muito longe um alumbramento, uma ilusión.
Essa palavra precisa — le mot juste — que me empresta o espanhol e enfeito com toque flaubertiano — com licença da leitora e do leitor.
*
Quase tão melancólico quanto o poemeto do poeta anônimo é o artigo de Fernando Gabeira na nova edição da “Revista Brasileira” (ABL), titulado “Algo está acontecendo, poucos sabem o quê”.
Sereno e equilibrado como poucos, paciente para apurar bem o que opina, Gabeira alinha evidências dos cenários mais prováveis da conjunção entre mudanças climáticas e revolução digital.
Algum grau de negacionismo é inato à nossa espécie, fadada a apostar na vida, maravilhada com suas crias, crente, por natureza, na posteridade.
Uns são mais negacionistas que os outros, uma grande maioria. Mas nem é bem disso que se trata, de negacionismo.
O autoengano, tão humano, a dissonância cognitiva, tão em voga, a simples desinformação, tão comum, explicam melhor nossa teima em ignorar o abismo.
É melhor tocar nossas embarcações e fazer o quase nada que nos cabe, liliputianos no caminho de titãs.
Não há muito a fazer contra a obsolescência humana projetada na expansão da inteligência artificial e da robótica.
Estão aí e vieram para ficar. São a nova corrida do ouro.
Nem o que fazer contra o surgimento de uma “lumpemburguesia”, diz Gabeira, citando o filósofo britânico John Gray.
É um paralelo com o “lumpemproletariado”, a subclasse formada pela mão de obra deserdada na revolução industrial.
E fazer o quê, por iniciativa individual, para conter as mudanças climáticas e a adequação tecnológica mais avançada a essa realidade?
O octogenário jornalista juiz-forano, que começou a vida querendo mudar o mundo, nos pergunta hoje:
“(...) Seria este um instante num longo processo de evolução através do qual os humanos transitam para as máquinas, mais preparadas para sobreviver num clima adverso?
Muitos não sentem que esse é um destino inevitável. (...)”
*
Na segunda-feira (15/04), a “Folha de S.Paulo” trouxe uma entrevista com Stuart Russell, professor de ciência da computação na Universidade da Califórnia em Berkeley.
O professor Stuart, bambambã mundial no assunto, aprofunda o realismo de Gabeira.
É bom que saibamos que o GPT 4 é o jardim de infância de uma história que, em até cinco anos, deve desembocar em sistemas de inteligência artificial geral (AGI, na sigla em inglês).
A AGI, sim, como se anuncia, será capaz de fazer tudo que seres humanos fazem ou melhor.
Reproduzo um trecho da entrevista concedida a Gustavo Soares:
“A OpenAI pode lançar o GPT 5 ainda neste ano, então talvez eles não concordem muito com a carta.
Bem, a carta [de cientistas e pensadores que pediram uma pausa no desenvolvimento da nova tecnologia] mencionava seis meses, e já se passou um ano. Mas eu acho que as empresas se sentem em uma corrida. Sob a lei atual, nada as impede de construir sistemas muito grandes. Na verdade, nada as impede de construir um sistema que destruirá o mundo.
Elas sentem que é melhor construir esse sistema antes que outra empresa o faça. E elas parecem reconhecer que há mesmo um risco de ser o fim do mundo. Mas, até agora, não parece ter passado pela cabeça delas simplesmente parar. Sam Altman já disse que vai construir a AGI e só depois descobrir como torná-la segura. Isso é loucura.”
*
Neste lindo e limpo abril, nesse abril finalmente abril, sinto que os eflúvios da nova fronteira tecnológica já estão aí.
Estão “antecipados na asa de todas as chávenas”, como a saciedade no poema de Fernando Pessoa (1888-1935) que mencionei no início deste Escrevidas.
É de “Passagem das Horas”, do heterônimo Álvaro de Campos, nesta estrofe,
“A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.”
Neste vídeo, Maria Bethânia diz a passagem referida no início.
O advento de máquinas que poderão se incumbir de todas as necessidades humanas, da medicina à literatura, da guerra às artes, vai nos pegar em cheio. Quem duvida?
Nos afeta mais do que podíamos imaginar.
E se não podemos imaginar, podemos sentir.
E já sentimos um gostinho de nossa ociosidade no apagar da última estrela que clareava a noite do humanismo.
O sabor é bem amargo.
Um novo Honoré de Balzac (1799-1850), isto é, robô ou androide muito superior ao criador da Comédia Humana, batizado quem sabe HB2054S, se encarregará de atualizar nossas ilusões perdidas.
Será o romance do século, de todos os séculos.
Como será a sessão de autógrafos?
Quem viver verá.
*
Seja, como for, na Terra, ou ao menos no Belo e redondezas, é pleno abril.
A luz modulada do mês, ainda que melancólica, por certo melódica, traz nas suas ondas um excelente álbum de música brasileira. Saiu na última sexta-feira (12/04).
Mauro Ferreira, no G1, achou o disco (haverá um CD) magistral.
“De Lua” (Circus) celebra a sintonia refinada entre Ná Ozzetti e Luiz Tatit.
A amizade deles é dos tempos do Rumo, conjunto prócer da Vanguarda Paulista criado em 1974 por estudantes da USP, Tatit à frente; Ná entrou como cantora em 1979.
Já a parceria musical é de 1994.
Se a voz de Ná tem a idade da artista, por óbvio, seu canto não perde a realeza.
Ela pode desconcertar um ouvinte com a mestria de sua divisão. Isso é muito claro nos duetos com Tatit.
O álbum agrupa dez faixas, entre canções inéditas e recriadas para o álbum.
Pinço a canção-tema, um rubi da cor Antares, composta pelos dois.
“De Lua” é uma síntese, um fruto que vem da flor de um elo, e seu néctar mescla o melhor de ambos.
Tirei a letra, como se dizia, e lego essa modesta contribuição à rede, que dela não dispunha.
“Vejo a Lua e seu luar
Desta Terra derradeira
Sempre foram companheiras
Cada uma em seu lugar.
Terra aqui e a Lua lá
Mas se atraem mutuamente
Uma é campo, rio e mar
Outra é só solo lunarAs estrelas vão além
Nem vêm, nem vêm
Estão ao léu
Depois do Sol
Depois do céu
São anos-luz
Como supusOu mais, ou mais
Que toda eternidadeAcho a Lua meio zen
Lua cheia é tão vazia
Ela é boa pra poesia
Mas nem ser humano temJá na Terra onde vivi
Terra firme é muito pouca
E por tudo que eu ouvi
Pode ainda diminuirAs estrelas eu nem sei
Quais são, quem são
Se vão crescer
Se vão brilhar
Se vão durar
Ou explodir
Ou apagar
EnfimAs estrelas são de lua
As estrelas são de lua”
O ritmo de “De Lua” lembra uma valsa acelerada ou um quase-baião.
A sanfona da Danilo Penteado (também são dele no álbum baixo e guitarra) conduz a contradança entre Ná e Tatit.
A marcação vem do violão de Tatit, como da caixa da batera de Sérgio Reze. (Mario Manga, no violoncelo e na guitarra, completou a turma no estúdio).
A letra da canção, singela e delicada, traz um pirlimpimpim, esse pó quimérico que nos desloca no tempo e no espaço.
Me levou de volta a uma vida em que a invenção poética na canção ainda encantava, até vendia.
Canta a Lua e a Terra, canta as estrelas, canta o luar, canta canções ao luar, canta a poesia lunar, cantam Ná e Tatit.
“As estrelas são de lua”. Que tal?
Elas estão ao léu depois do céu e do Sol, delas pouco sabemos desde esta Terra onde vivi (a voz da lua), em que a terra é muito pouco mas pode diminuir, enfim.
*
Outro álbum de abril, mais requintado até, é “Guinga” (GroundUP), da trombonista e vocalista estadunidense Natalie Cressman com seu parceiro brasileiro, Ian Faquini, cantor, compositor e violonista de trânsito internacional.
Voz e violão de Guinga, cujo nome de pia é Carlos Althier de Souza Lima Escobar, comparecem em cinco das 14 faixas das quais é autor ou coautor com parceiros como Aldir Blanc (1946-2020), Paulo César Pinheiro e o próprio Faquini.
Cressman se mostra muito natural, se se pode chamar a técnica instrumental apurada de natural, com a música brasileira.
Ou é precisamente isso, soa natural por ser refinada e amadurecida.
Leio que era chamada de “Bossa Nova girl” quando aluna de música em Nova York.
Mas o que esse álbum transpira e exalta, ao terçar violão e trombone com certa pegada jazz, é o complexo universo de referências de Guinga.
Sua música mistura clássico, jazz, choro, ritmos nordestinos e o cancioneiro geral brasileiro
Celebrada riqueza harmônica, transita entre alegria e nostalgia, luz e sombra.
O duo trombone violão, por incomum, reflete novos ângulos da obra do compositor, e quem a conhece se delicia.
*
Acho que por ora é isso.
Salve, saravá, um abraçaço.
Recadin
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