Esbodegado, Estropiado, Escangalhado
O Cansaço e suas Metáforas na Triste Hora da Mudança
Camaradas,
Sintam-se em casa. Aqui todo mundo é bamba. Todo mundo bebe e todo mundo samba.
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O espanhol Iñaki Uriarte, autor do melhor diário que li neste século, fala de saída:
"Pla [o escritor Josep Pla i Casadevall] disse que se deve escrever como se escreve uma carta à família, mas com um pouco mais de cuidado. Vou fazer isso aqui como se mesmo as cartas fossem um alarde de retórica. Como se fala sozinho".
É bom conselho. Mas não se presta de todo aqui, ou Escrevidas seria infiel a seu marco zero: “Escrever a vida — vidas — sem meias palavras”.
O que a vida serve é o que há para escrever, ainda que sobre o mundinho do autor.
Mundinho fronteiriço a tantos mundinhos outros, nem tão distintos, ou separados, assim. Temos interseções, não é? Vide uma roda de botequim, a sala de espera do hospital, o entorno ao balcão das feiras e mercados.
Mas Uriarte está certo quanto à retórica. É preciso ter cuidado para não se deslizar no bolerão.
Dito isso, poso contar aqui que acabo de travar com Rachel uma gloriosa, épica, homérica, ciclópica batalha, ainda que provisória: uma mudança de apartamento, depois de 26 anos. O nosso está em obras.
Mudanças não são piqueniques e tornam-se uma maldita provação no correr dos anos.
Perdemos o conforto de nossa paisagem mais íntima, tão longamente assentada, bem como a tediosa — ainda que reguladora dos nossos dias — familiaridade da vizinhança. E sem mais aquela disposição para recomeçar.
Somos engolfados pelo caos ao revirar pertences, memórias, fantasmas que estavam quietos no seu canto, sem falar na pletora de caixas, embrulhos, pacotes e trastaria, e na desmesura de carregadores com objetos queridos, ou na recolocação, na reacomodação, na readaptação de tudo, e é com tudo isso temos de lidar, na verdade batalhar.
Mudar é cutucar a onça do Tempo com a vara curta do dia a dia.
Quando preparo estas mal batucadas linhas, não sei de onde pingam as gotas de energia que passo ao teclado, e que o teclado mal consegue repassar à tela do notebook.
Oh, sim, leitora amiga, leitor amigo.
Minha velha guaiaca anda a ponto de estourar de dobrões de ouro, ienes, yuans, mil-réis, dólares, euros, estupendos saldos simbólicos em criptomoedas, tal é a fortuna do meu cansaço.
É o melhor ativo do momento, o cansaço, não sabia? Veja só a Terra, como anda esfalfada e esgotada, e já nos põe em perigo, e todo o esforço para nos salvar.
Penso em abrir capital nas bolsas de São Paulo, Londres e Nova York. Espero que os rapazes (persiste a hegemonia masculina no topo) do Vale do Silício se interessem pela aquisição e se arrisquem em mil startups para deter o cansaço.
O Vale do Silício, para quem ainda não sabe, é a região da Califórnia, ali nos States, que se tornou o Olimpo das gigantes de tecnologia que mudaram sua vida e vão mudar ainda mais.
Eternos rapazes nunca cansam.
Mas, querendo ou não, eles, rapazes do Vale do Silício, são protagonistas da “sociedade do cansaço” formulada pelo filósofo Byung-Chul Han, a “sociedade do desempenho” com suas “academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética”, a sociedade da deusa saúde, sucedânea de deus morto.
O cansaço físico e mental dá carona, pode ocorrer, a outra modalidade de canseira, de natureza mais existencial, o “cansaço das coisas” (já volto ao ponto).
Oh, sim, eu estou tão cansado...
Oh, sim, cantarolo “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Wally Salomão (1943-2003), essa mais que linda melô da melancolia desferida como uma lança por Gal Costa (1945-2022) no show, apresentado no teatro Tereza Rachel, no Rio, e disco “Gal a Todo Vapor”, apelidado “Gal Fa-Tal”, em 1971.
“Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navioEu não preciso de muito dinheiro
Graças a Deus
E não me importa, baby (...)”
Há um sonoro equivalente em alemão para quem se sente esbodegado, estropiado, escangalhado, esfrangalhado.
Atende por "angestrengt", particípio passado do verbo “angestreng”. Engraçado, nunca me esqueci da palavra, que parece trazer algo estragado, desde uns três semestres no Instituto Goethe (milênio vai, milênio vem), cá no Belo.
Entramos abril, o mais cruel dos meses segundo um famoso poeta, e, não, as águas de março não trouxeram “o fim da canseira” que eu bem merecia.
Ainda é pau, pedra, o fim do caminho.
Creio que somos propensos a cansar de tudo, incluindo a esperança, essa deusa pícara que comanda nossos ciclos de autoengano.
Será, que será?
Está no corpo e na cuca, em tanto se matutar sobre o fim do caminho, ou sobre o descaminho.
A essa altura, você sabe, vou tropeçando em canções, que me ajudam a pensar, levar o barco, a refletir um pouco para ver se o samba (ou bolerão) do meu texto está tomando jeito (e já parafraseio “Corrente”, de Chico Buarque, do LP “Meu Caro Amigo”, 1976).
Divago.
Tentava me lembrar destes versos de “O que Será (À Flor da Pele)”, também de Chico, na versão eternizada por Milton Nascimento no álbum “Geraes” (1976).
“(...) O que será que será (...)
Que é feito estar doente d'uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos toda alquimia… E nem todos os santos, será, que será?
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite (...)”
Pois acho que é disso que se trata. Quando já não é uma coisa nem outra — descanso ou cansaço — entramos no ilimitado além do cansaço.
E o universo vai se enchendo de areais e desertos.
*
Quando ponho minhas, nossas, canções no Escrevidas, me parece óbvio que temos uma história, eu e você, com essas canções.
Somos frutos da cultura, não só da natura.
E a canção popular é a modalidade artística de maior influência sobre o que éramos — adolescentes, jovens.
Isso toca no presente, contínuo, ao menos para a maioria dos mortais cujas alminhas se empoleiram feito araras multicores nas copas de nossas mais altas palmeiras, ao som de Ary Barroso.
Canções são arte, música, literatura. Nos cobrem a pele como líquens cobrem árvores e pedras, quando o ar é bom e a chuva, amiga.
Disso, um pouco, tratava seo Belchior (1946-2017) em “Todo Sujo de Batom”, flechada do LP “Coração Selvagem” (1977) na mosca dos corações:
“Eu estou muito cansado
Do peso da minha cabeça
Desses dez anos passados, presentes
Vividos entre o sonho e o som (...).”
Eu podia buscar outros exemplos dessa metalinguagem, de canções que falam de canções, mas volto ao Belchior de “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, do álbum “Alucinação” (1976):
“Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Sem dinheiro no banco sem parentes importantes
(...)
Mas trago de cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino tudo é maravilhoso
(...)
Tenho ouvido muitos discos conversado com pessoas
Caminhado meu caminho
Papo, som, dentro da noite (...)”
Em 1976 (mais um ano milagroso na década para a música brasileira) saiu outra bolacha que recorria ao substrato da época e topava com a canseira geral.
Uma das faixas do LP, “Além do Cansaço”, me lembra uma aquarela que flagrasse a alma de rapazes e moças a zanzar, vivos como nunca, nas ruas, nos ônibus, nos colégios, nos trampos, entre transas e paixões (sonhos reais), em meio às incertezas, brutalidades e parvoíces que poluíam o ar e o meio ambiente.
O álbum “Raimundo Fagner” canalizava a potência sob alta pressão que tinha válvulas de escape na arte dos artistas populares — nossas “antenas da raça”.
Era o auge da era do vinil, e bem o seu fim.
Cada artista, nossos ídolos, atuando em seu nicho e mescla de “MPB”, samba, rock, poesia, literatura, a própria tradição centenária da canção e do carnaval, tudo temperado pelas várias culturas regionais.
Belchior e Fagner tinham como cúmplices Luiz Melodia (1951-2017), Ednardo, Alceu Valença, Zé Ramalho, Sérgio Sampaio (1947-1994), João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020), Paulinho da Viola, Gonzaguinha (1945-1991), Edu Lobo, Ivan Lins e Vitor Martins, baianos cacicados por Caetano e Gil, todo o Clube da Esquina capitaneado por Milton, muitas e memoráveis cantoras, qual Elis (1945-1982) e Beth Carvalho (1946-2019), e mais um bando de gente genial a criar coisas lindas e singelas.
Pois Fagner, naquele álbum com a carantonha estampada na capa, mandava como um corisco o rock “Além do Cansaço”, composto por Petrúcio Maia (1947-1994) e Brandão (Antônio José Soares Brandão, 1937-2021), cuja letra diz, com certo esforço para caber na melodia (marco com barras as divisões do canto):
“Quando não houver/ mais música no ar
nem houver/ sorrisos em volta
quando nada/ na tarde morta/ além do cansaço da vida falar
quando o cigarro irritar a garganta/ e a bebida/ os lábios queimar
e a presença/ de alguém que inda canta
não consiga no peito cantar
quando a rua a casa e a porta/ não mais falem de ir ou chegar
quando não mais houver poesia/ na triste
canção/ da mesa de um bar
é preciso entender que perdida/ pela vida uma estrada caminha
e que uma cidade sozinha/ não comporta a procura da vida
É preciso sair pelo mundo
procurando somente encontrar
é preciso alcançar a aurora
que a noite teimou em fazer não chegar
é preciso entender que a vida quer um jeito de resistir
é preciso saber que agora
a aurora não pode esperar por vir.”
Uma grande trupe de jovens ou já nem tão jovens compunha nesse nível, com versos de alta fatura, como os que marquei em negrito, em discos gravados com o requinte de instrumentista entre os melhores do mundo e arranjadores que deixaram seu nome nessa história.
Poesia, canções, música de toda sorte concorriam para tornar a vida mais vivível.
Mas tem hora para tudo.
*
Oh, sim, eu estou tão cansado.
Falei acima no universo feito deserto, quando o cansaço é impossibilidade de descanso e nem mais cansaço é, algo que ocorre “quando a rua a casa e a porta não mais falem de ir ou chegar”.
Será que será?
Me acode a memória, salve, com um poema de Fernando Pessoa (1888–1935) chamado “Tenho Dó das Estrelas”, assim:
“Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão —
Qualquer coisa assim
Como um perdão?”
Zé Miguel Wisnik o musicou. Jussara Silveira, Marcelo Costa, Sacha Amback, no álbum de Jussara “Ame ou Se Mande” (2012), deram a essa bonita parceria sua melhor versão.
“Não haverá um cansaço/ Das coisas,/ De todas as coisas,/ Como das pernas ou de um braço?”. Não há quase uma certeza nessa interrogação?
E, no arremate, o poeta não segue falsamente inseguro, fingidor como quê?
“Não haverá, enfim,/ Para as coisas que são,/ Não a morte, mas sim/ Uma outra espécie de fim...”.
Sentir o cansaço das coisas é como estar além da morte. A ideia de morrer é impotente ante essa espécie de cansaço, um cansaço indiferente.
*
Assim e assado, encerro esta cartinha aluada que vou pôr no correio astral, só pra você, com qualquer coisa assim como um perdão, ao tentar uma clave mais solar.
Recorro (não tem erro) ao magro moleque Gonzaga Jr., Gonzaguinha, menestrel que teve o dom do drama aliado ao dom de celebrar a vida no meio da canseira.
Como a rapaziada na qual ele acreditava, o cantautor Gonzaguinha, no delicioso samba “E Vamos à Luta” (LP “De Volta ao Começo, de 1981”).
“(...) Aquele que sai da batalha, entra no botequim
Pede uma cerva gelada/ e agita na mesa/ uma batucada
Aquele/ que manda o pagode/ e sacode a poeira suada/ da luta
E faz a brincadeira,/ pois o resto/ é besteira
E nós estamos pelaí (...).”
Pode também ser aquele recado vitalíssimo, hit do auge de todas festas: “Sempre desejada/ por mais que esteja errada/ ninguém quer a morte/ só saúde e sorte”, do samba “O que É, o que É” (“Caminhos do Coração”, álbum de 1982).
Pode ainda ser a balada romântica, um tanto melosa, “De Volta ao Começo”:
“E é como se eu descobrisse que a força/ Esteve o tempo todo em mim/ E é como se então de repente eu chegasse/ Ao fundo do fim/ De volta ao começo.”
Tal é a ordem das sensações que uma mudança pode despertar, o cúmulo do cansaço acumulado, quando nos sentimos esmolambados, esbaforidos, escalafobéticos.
Então, em sua próxima mudança, tenha cuidado (se soubesse como fazer, botaria um vídeo de autoajuda sobre isso no TikTok, para faturar uns trocados).
Não permita que seu samba decaia no bolerão, ou no samba-canção abolerado, e que um túnel do tempo te engula no cubo das trevas de “Ninguém Me Ama”.
Foi um tremendo sucesso de Fernando Lobo (1915-1996) e Antonio Maria (1921-1964) no gogó de Nora Ney (1922-2003), em 1951, depois gravado até por Nat “King” Cole (1919-1965).
Prefiro ouvir na voz-remanso de Nana Caymmi, que encanta,
“Ninguém me ama, ninguém me quer
Ninguém me chama de meu amor
A vida passa e eu sem ninguém
E quem me abraça não me quer bem
Vim pelas noites tão longas, de fracasso em fracasso
E hoje descrente de tudo, me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando e eu chegando ao fim”
Depois dessa, e depois de ouvir Nana, no fundo do fim, como espero, acho que é isso, por ora.
Salve, saravá e um abraçaço.
Recadin
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