Resta escrever. Recomeçar a escrever. Continuar a escrever. Ainda escrever.
Primeiro me apresentar; me reapresentar; propor e reafirmar um compromisso: escrever a vida — vidas | Escrevidas — sem meias palavras.
Antes de tudo: buscar (ainda) a alegria da beleza; as sensações que vibram na expressão da luz; nas cores; nas modulações musicais; na forma pensada e recriada do objeto artístico; nas singelezas do amor; nas notas do alfabeto orquestradas em acordes de palavras e frases harmônicas.
Compartilhar ideias, comentar leituras, músicas, indagações, curiosidades, vibrações. E valorar o belo.
Quando recomeço a escrever, me sinto num beco sem saída, atolado em ceticismo: o que ainda podem arte e palavra?
É preciso que a palavra pulse, quando a internet há muito naufragou seus navegantes num tsunami, num cataclismo de palavradas, imagens e ruídos.
Estamos envenenados de certezas; encabulados de ignorâncias; acossados por telas de todos os tamanhos, redes sociais, conteúdos, narrativas e anúncios geridos por algoritmos de empresas trilionárias às quais servimos como formigas operárias; estamos vendidos; inseguros; apartados; temerosos.
Estamos moídos.
Mas somos os Tais, Digitais.
Ah, a fantasia de ter o mundo (tempo e espaço) à mão, a vertigem da velocidade que nos engolfa, a arrogância de deter a verdade que nos cega.
E o mundo que se evapora a cada novo aplicativo, a cada toque na tela, a cada click, a cada quark.
E vamos juntos no ar como uma suspensão de partículas sobre as máquinas de silício, pulverizados nas nuvens, zeros e uns (quanto valem nossos dados, que são dados?).
Vivemos a era da fofoca (do espetáculo, da pornografia e da mentira) à velocidade da luz.
Andamos mimados, supérfluos, solitários, ultrafluidos no turbilhão do tempo.
Fazemos checkups e nos cercamos de previsões e seguros, de precisões para domar o tempo, a economia, o futuro da tecnologia, o fim do mundo, a saúde, a morte.
Assim crescemos (“performamos”, “entregamos” — e envelhecemos) sem deixar assentar a humana casca de cada dia.
A propósito, quando começo a escrever esse texto é tarde de 4 de janeiro, aurora de 2024, o céu é cinzas, estou em meu escritório no Belo. Faz 21 graus Celsius. Me sinto bem com a brisa e uma promessa de chuva.
E o ano passado foi daqueles.
Venho, como tanta gente, para brincar de Arthur Rimbaud (1854-1891), de uma longa temporada no inferno; agora, como tanta gene, sigo um lume e na verdade não sei como. Sei por quê. Numa palavra, viver. Volto a escrever.
*
Em cem, 200 anos, creio, passarão a limpo a história da humanidade sugada na turbina dos avanços da tecnologia, do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (1894-1963), hoje quase inteiramente realizado ou prometido para breve.
Tecnologia, sim, um tanto primitiva, da qual no entanto me servi há mais de dez anos para registrar as duas fotografias que ilustram o post.
Foram tiradas nos limites de um dia guiado pela alegria da amizade, da beleza e do prazer.
Você, cara leitora, caro leitor, me ajude a interpretar o sentido dessas imagens, se algum sentido pode haver na divisa do dia com a noite.
Também quero dizer, neste recomeço, que a vida sem arte e pensamento nos leva a surfar uma onda permanente e risonha de "calma boba" (Albert Manguel).
Arte e pensamento provocam, desconcertam, desconectam, iluminam trevas, ensombreiam dogmas, dão novas dimensões, signi-ficados à vida.
Este primeiro texto é só um olá, um esperançoso oi por sua companhia nessa nova jornada de um jornalista e poeta entrado nos 60, que não tem mais que fazer exceto escrever para traduzir-se (como na canção abaixo) e ganhar seu pão.
Mais que prestar um serviço, comentar lançamentos e trazer notícias, quero me deter no que mais se assenta em mim, em nós, de leituras, audições e observações. Reler é tão bom ou mais dadivoso que ler, tantas vezes, como ouvir um quarteto ou canção pela enésima vez e descobrir ainda mais beleza em melodias, letras, poemas, tal é a potência da criação.
No próximo (carta, post, newsletter etc., como você quiser chamar) terei muito gosto em te apresentar Yanipab.
É um pé de jenipapo espirituoso, uma árvore da vida mais antiga que meus ancestrais.
Yanipab segue jovem na glória de seu esplendor.
Bem-vinda, bem-vindo.
Salve e saravá!
Uma canção decisiva: Traduzir-se
“…Uma parte de mim/ almoça e janta:/ outra parte se espanta./ Uma parte de mim/ é permanente:/ outra parte/ se sabe de repente.// Uma parte de mim/ é só vertigem:/ outra parte, / linguagem.// Traduzir uma parte/ na outra parte/ — que é uma questão/ de vida ou morte —/ será arte? (música de Raimundo Fagner sobre poema de Ferreira Gullar)
Antonio Siuves | Substack.