Florescer em cor e saudade
Jornalista e poeta anônimo disputam os temas da edição. Quem ganhou, quem perdeu, isso é com a leitora e o leitor
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Neste domingo, dois ou três minutos depois das sete horas da manhã, “Vadinho”, oitavo capítulo do “Réquiem do Boi - Memórias Melódicas”.
Minha manhã começa com café, ao menos três xícaras, uma olhadela nas plantas e carolinas, outra no céu.
Já na redação do Escrevidas — para um jornalista, um cantinho devotado à escrita será sempre redação — procuro, há tempos, driblar um velho hábito de “folhear” o que restou da velha imprensa no mundo online e na ordem algorítmica.
Quase sempre erro o drible e as notícias me roubam a bola. Perco de goleada de mim próprio — e perco tempo.
Agora mesmo vejo que tentam explicar a ascensão da direita radical na França com conversa pra boi dormir.
O mundo está mais difícil de entender. A democracia está nas cordas em toda parte.
Muitos comentaristas nadam no raso, tergiversam pra preencher tempo e espaço — assim ganham a vida e se preservam da crítica e dos fatos.
Pouco se diz das motivações do eleitor, das causas do desencanto ou desespero das pessoas, da frustração e do cansaço com a mesquinharia do jogo político e a escassez de verdadeiros estadistas em nossa época.
Ou das ilusões do eleitorado com a propaganda de extremistas à direita e à esquerda, que prometem, ambos, lhes franquear as tetas do Estado do berço à sepultura.
Insistem, certos comentarias, neste momento, que o partido de Marine Le Pen, o Reunião Nacional (NR), recorreu a maquiagens para enganar a freguesia, por isso venceu as eleições de domingo passado.
O “Globo News Internacional”, que passa domingo à noite, usou e abusou da imagem do “banho de loja”. Os participantes do programa repetiam a expressão e festejavam entre si por a terem formulado, como um achado genial e revelador.
Com mais categoria, o “The New York Times” apontou uma estratégia de “rebrand” (renovação e atualização de uma marca corporativa) do NR.
A “imprensa”, ou o que resta dela e das mídias todas, vendem publicidade — e nos vendem como audiência consumidora aos anunciantes.
A maior parte do “conteúdo” que oferecem nesse comércio é previsível e fátuo. No popular, muita encheção de linguiça.
Me parece sintomático que boa parte da humanidade prefira enfiar sua cabecinha na areia a encarar as mutações da vida e a complexidade do mundo.
A radiação de fundo da infância e as pulsões do “principio do prazer” nunca deixam de se meter no exercício da razão.
Conspiranoicos de ultradireita e fundamentalistas religiosos no seu deserto, identitários e dogmáticos de esquerda em outro deserto.
Mas um deserto é um deserto é um deserto.
Afinal, se vê, que coisa.
Não pude resistir a espiar os jornais. Outra goleada do jornalista no poeta anônimo.
O maior jornal americano, e maior do mundo, trazia no alto de sua página online, segunda-feira (1º/7), do lado esquerdo, que mais atrai nossa visão, o dilema dos democratas nas eleições de novembro — dada a instável acuidade mental de Joe Biden — exposta em praça pública planetária.
O senhor Biden, 81 anos, e seu adversário, 78, se posicionam para disputar o comando do império americano, ora desafiado pelo império chinês, de braços dados com o renascente império russo.
Nesse filme da nova guerra fria não passamos de extras.
Ai que preguiça.
Mr. President se estrepou no debate de quinta-feira passada — igual ou pior a qualquer debate presidencial no Brasil. Puro reality show, puro horror.
Faltou pouco para eu ter saudade do Padre Kelmon.
Um candidato, no império americano, exerce sua imunidade para conspirar, mentir, insultar e asnear à vontade, o incumbente, bastante idoso, não se dá por vencido nem cansado. Imagina-se inteiro, quer mais quatro anos.
Aqui é preciso todo cuidado. Mãos de lã.
Há na praça um novo pecado, o etarismo — a discriminação contra o envelhecimento.
Eu mesmo vou pelo espectro de vítima potencial do etarismo.
Mas tento não me iludir sobre as frias forças da entropia, conforme — você se lembra do ginásio? — a Segunda Lei da Termodinâmica.
Essa lei, para o que cabe aqui, diz que cedo ou tarde entregamos a rapadura.
Vivemos mais, é certo, mas ainda não nos livramos da decadência nem da decedura (me agrada achar esse sinônimo para a “Indesejada das gentes”).
A reengenharia dos costumes e da moral por muito tempo ainda quebrará a cara no muro da realidade, por mais que patrulhas aplicadas se dediquem a dourar a pílula.
E a normalização do absurdo, receio, sempre encobrirá o germe da catástrofe.
*
Do lado direito da referida página, o “Times” dava uma investigação sobre os traumas do “ghosting” — neologismo (ao menos português corrente) para o abandono repentino de alguém numa relação de namoro, amizade ou trabalho — sobretudo no meio virtual.
Poucas e boas.
Sou de um tempo em que ansiávamos pelo carteiro.
Era um pouco como em “Mensagem”, originalmente um samba de Aldo Cabral (1912-1994) e Cícero Nunes (1912-1993), lançado por Isaurinha Garcia (1923-1993) há quase 80 anos, depois gravado por Vanusa (1947-2020) e Maria Bethânia — você pode ouvir essas versões na Playlist desta edição.
Mas ainda não tínhamos um termo charmoso em inglês pra tascar na ingrata ou no ingrato que tomava chá de sumiço postal.
Ninguém sonhava com email, Whatsapp, essas coisas, um telefonema interurbano custava os olhos da cara — o telefone vai se popularizar entre as classes médias remediadas só a partir de 1973 — e o telegrama era para ocasiões especiais — casamento, aniversário e morte.
Mas acho que a vítima do “ghosting” devia levar em conta que quem se transforma em espectro online talvez não passe de assombração.
Melhor encontrar alguém de carne e osso e se livrar do encosto.
*
Por Shiva!
Fui olhar os jornais e me desviei de meu propósito, e comigo me desavenho.
Se o mundo se esgarçou, não serei eu a remendá-lo.
Considere — paciente e tenaz leitora, paciente e tenaz leitor — como “nariz de cera” o escrevinhado acima, mera lenga-lenga antes de entrar em tema da maior importância.
Agora é com o tal do anônimo.
Que vos fala de nossas cactáceas, venerandas e veneradas flores-de-maio (Schlumbergera truncata), plantas epífitas maturais, por exemplo, das serras do Mar e dos Órgãos, que ficam ali mesmo, nem tão longe do Belo.
As epífitas não são parasitas de outras plantas onde se aninham, senão suas comensais, assim como as bromélias e orquídeas.
Nossas flores-de-maio, apesar do nome, preferem florir entre junho e julho, em vez de maio e outubro, o que é mais comum à espécie, e já floraram em agosto.
Em nossa intimidade, são tratadas de flores-de-mãe, flores-de-irmãs e ainda flores-de-irmãs-que-já-se-foram.
A mais antiga, protegida contra o etarismo, é de herança materna, vem lá de longe, do remoto e intangível século 20.
Suas ramificações escasseiam e ressecam, exaustas, mas acabam de florir, quem sabe, pela última vez.
Em outro vaso está sua descendência viçosa, cuja floração veio poucos dias antes.
Essas plantas merecem cuidados especiais em casa.
São mementos, guardiães representantes dos nossos idos em nós.
Caprichosamente, não é todo ano, floram — e abrem uma celebração comum na existência familiar.
Suas pétalas se arranjam em cachos estelares em gradientes de rosa.
São uma bênção do dia. Florescem em cor e saudade.
VÍCIOS SOLITÁRIOS
Tenho um amigo que é outra pessoa em estado online.
Nossa amizade é mais antiga que nossa flor-de-maio mais longeva.
Quando nos encontramos, é sempre o velho camarada — gentil, tímido mas gozador, boa prosa.
Sozinho no seu canto, com o infernal celular nas mãos, assume outra personalidade, a de uma criatura biliosa, um super-vingador das trevas.
Recebo seu lixo diariamente. A trolha inclui notícias e imagens falsas, pornografia e piada homofóbica. Apago tudo.
Mas não bloqueio nem cancelo o amigo.
Sei que afundou junto com a legião de vítimas das redes sociais.
Um dependente telemático é como um dependente químico.
Aplico-lhe, sim, um apropriado “ghosting” no ambiente online, dou-lhe uma boa geladeira.
Ele parece viver do vício. Dedica longas horas da aposentadoria a transmitir lixo em código binário.
Age exatamente como o viciado solitário.
Não passa um dia inteiro longe da rolagem infinita das redes, do contrário entraria em delirium tremens .
Mas, se conseguimos nos ver, uma vez por ano, numa roda de cerveja, tête-à-tête e vis-à-vis, ele volta a ser quem era. Desaparece o bilioso vingador. Desaparecem seus fantasmas.
Aí nos pomos a lembrar, pela milésima vez, as bobagens de nossa jornada comum, as aventuras dos carnavais, e rimos feito meninos.
*
O mundo online é um pântano pra muita gente.
Suas polianas e Cândidos são cada vez mais raros.
*
O uso excessivo de redes sociais causa graves distúrbios em crianças e adolescentes, como ansiedade e depressão, também automutilação e suicídio.
E agora, segundo um novo estudo americano, é associado à dessensibilização e a distorções morais da freguesia.
Dito claramente, a internet pós-redes sociais piora e degrada a humanidade.
O fenômeno é mais comum de ser percebido com o distanciamento etário, embora velhotes como o autor dessas malbatucadas, assim como crianças e adolescentes, sejamos vítimas preferenciais da escrita algorítmica na ampliação do trilionário mercado de engajamento — o serviço voluntário prestado às gigantes da tecnologia por quem curte, comenta e espalha torpezas.
MUSA MÚSICA
Peço licença poética para pedir à leitora e ao leitor a gentileza de ouvir esta canção. Volto em seguida.
“Porto”, de Dori Caymmi, vem da trilha de “Gabriela” (1975).
É a melhor novela já exibida pela TV Globo, livremente adaptada do romance “Gabriela, Cravo e Canela” (1958), de Jorge Amado (1912-2001), por Walter George Durst (1922-19477).
A gravação original, do MPB4, vai na Playlist desta edição; a do vídeo é a versão do autor, faixa do LP “Dori Caymmi” (1980).
Em 1975 eu chegava aos 14 anos e registrava essa música em arranjos neuronais, ou, dito de forma mais singela, em recônditos recessos d’alma.
Seus ecos, como ondas contra o quebra-mar, nunca se perderam.
Raras são canções com a graça de ferir emoções profundas. Essa é uma delas.
Era perfeita na novela, como fundo das aparições da personagem de Sônia Braga; segue ideal agora, na trilha do Escrevidas.
Não tem letra propriamente.
Mas o canto se expressa com grande clareza por meio de fonemas, vocalizes, evocativos das línguas dos escravizados:
“IIaiê__, ilaiê__oni - ona, lalairê
Oni__ona_ neo__nô
Ilaiê_ ilê-leô, iê_Oni-ona_nea_neô-nô
IIaiê__, ilaiê__oni - ona, lalairê___
Oni - ona, neô-nô__ ila- ilê_ leleô__”
Bem, é o que dizia minha intuição. Resolvo, ao repassar esse texto, consultar a IA da Microsoft.
Tenho a seguinte resposta:
“Esse trecho parece ser do idioma iorubá, uma língua africana falada principalmente na Nigéria, Benin e Togo. A tradução exata pode variar, mas uma interpretação possível é:
“IIaiê__, ilaiê__oni - ona, lalairê Oni__ona_ neo__nô Ilaiê_ ilê-leô, iê_Oni-ona_nea_neô-nô IIaiê__, ilaiê__oni - ona, lalairê___ Oni - ona, neô-nô__ ila- ilê_ leleô__”
Tradução aproximada: “Olá, olá, o que está acontecendo? Estamos juntos, compartilhando alegria Olá, olá, o que está acontecendo? Estamos juntos, compartilhando alegria.”
Será? Sei não. Fico com minha intuição, menos comprometedora.
Pois em minha intuição, os versos de “Porto” também evocam um paisagem de mar noturno sem luar.
Era a poesia bastante que o tema pedia. Dori teve um de seus momentos mais luminosos como compositor.
A melodia parece traduzir uma sedução pelo mar e revelar um destino que não se cumprirá, nisso reside sua grande beleza.
O diálogo do violão com a flauta é quase o augúrio de um navio atracado sem que quem esperávamos descesse à terra, entre o ir e vir das gentes e bagagens no cais.
Das treze faixas do álbum “Gabriela”, “Porto” é uma de duas canções que não perderam esplendor, lá se vai meio século. Soam como cantigas intemporais.
A outra é “Alegre Menina”, com música de Dori e poema de Jorge Amado.
Os versos são da epígrafe de um dos capítulos do romance, intitulados “Cantar de Amigo de Gabriela”.
O intérprete da primeira gravação, Djavan, engatinhava na carreira musical.
Mais uma vez o violão de Dori se exprime com originalidade na melodia, em que se dissolvem como açúcar na boca palavras de um sonho de realeza — no amor e na paixão — no elo entre a bela (retirante da seca) Gabriela e o imigrante turco seu Nacib, Sônia Braga e Armando Bogus.
*
Ouça a Rádio Escrevidas: 1001 canções brasileiras. A lista é fruto de muita pesquisa e burilamento ao longo de uns sete anos.
O modo aleatório, com emprego de IA pelo Spotify, ficou muito mais interessante para ouvir listas muito longas como essa aí.
*
Queridos ouvintes, queridas ouvintes:
Encerro esta edição com dois sambas de grande requinte e delicadeza.
Ambos do ilustríssimo mineiro de Miraí Ataulfo Alves (1909-1969).
O primeiro foi quinta-essenciado por Caetano Veloso, ao violão com batida de joão-gilbertiana, em gravação não editada extraída de um especial de TV.
Sempre me alegra ouvir “Infidelidade”, pela justeza entre ritmo e lírica, nota a nota, e, claro, pela graça da canção.
“[…] Gostei de uma criatura
Sem moral, sem compostura
Sem coração, sem pudor
Era o dono do negócio
Sem saber que havia um sócio
Na firma do nosso amor [...]”
O outro samba, “Pois É”, gravado por Itamar Assunção (1949-2003) em seu álbum dedicado a Ataulfo, de 1996, se revela em plenitude no canto triste do compositor.
“Pois é falaram tanto que dessa vez
A morena foi embora
Disseram que ela era a maioral
E eu é que não soube aproveitar
Endeusaram a morena tanto, tanto
Que ela resolveu me abandonar
A maldade dessa gente é uma arte
Tanto fizeram que houve a separação
Mulher a gente encontra em toda parte
Só não encontra a mulher que a gente tem no coração”
Ataulfo tinha mãos de ourives, as palavras entram como que predestinadas à melodia. Ataulfo foi um homem elegante na vida e na arte.
Há toques de gênio em frases como “a maldade dessa gente é uma arte”, ou nos três primeiros versos de “Infidelidade”: “Aquele que considera/ O amor uma quimera/ Vive longe do sofrer...”.
Caetano, aliás, transporia “aquele que considera” a “Jenipapo Absoluto”, na última estrofe, mas disso já falei aqui.
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!