Lala e Glorinha
Sexo e linguagem na rosiana "Buriti", novela endereçada ao desejo feminino
Camaradas,
Sintam-se em casa nesta espaçonave à deriva entre galáxias de Gutemberg e nuvens de elétrons.
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Disse outro dia que estava lendo “Noites do Sertão”, de João Guimarães Rosa (1908-1967). “Creio que Buriti é onde Rosa mais se aprofunda ao nos guiar, poeta, na paisagem interior dos sertões, pelo substrato dessa paisagem que a alma absorve”, escrevinhei.
Mal mal, chegava à metade da leitura. A natureza é o elemento que sobressai nessa altura mas a escrita já é pautada na clave de uma sensualidade serena e exuberante, sob o calor vermelho coral dos cachos de buriti.
Chamei “contos” aos dois “poemas” (conforme JGR) do livro, quando novelas é que são, romances curtos.
Um amigo, assinante do Escrevidas, enviou comentário que me motiva a voltar à letra, ao “Buriti”. Só agora terminei o livro.
A novela me parece superior a “Lão-Dalalão (Dão-Lalalão)”, que abre o volume —mais provoca e mais desperta um leitor.
“Buriti, esse pequeno romance é único não só pelas belíssimas descrições da natureza (se não me falha a memória, diria o mesmo de Campo Geral)”, escreveu Paulo J.R. Teixeira, “mas também por dar voz à sexualidade feminina dos anos cinquenta em pleno sertão das Gerais. Genial. Se ele realmente conseguiu trazer à tona os desvãos da alma feminina eu não saberia dizer; destes eu apenas suponho. Há que se perguntar as suas leitoras.”
Não quero nem imaginar quanto já se escreveu sobre o viés libidinal de “Noites do Sertão”, lançado em 1956 pela José Olympio Editora, em um dos volumes de “Corpo de Baile”, obra que encartava sete “novelas labirínticas”, no dizer de Rosa, mais tarde subdividida nos três livros celebrados; os outros sendo “Manuelzão e Miguilim”, com as novelas “Campo Geral” e “Uma História de Amor”, e “No Urubuquaquá, no Pinhém”, com “O Recado do Morro”, “Cara-de-bronze e “A História de Lélio e Lina”.
Suponho uma biblioteca inteira de fortuna crítica — etnográfica, psicanalítica, filosófica, sociológica, não sei mais quê — sobre cada linha da obra roseana, à luz de Diadorim, tudo nos devidos trinques acadêmicos. Mas ai, meu deus, que preguiça. Não é mais pra mim.
Meu corte, recorte, é modesto, bem recatado e, espero, breve: a trama verbal do desejo em “Buriti”.
“Dalalão” mira, em tons e subtons, o amor e o ciúme sexual do protagonista, Soropita — ciúme mormente de homens pretos fortes, ciúme de Doralda, mulher dedicada e encantadora que ele tirara da zona, ciúme que lhe rói a carne e a razão.
Como em “Ciúme”, a canção de Caetano Veloso, neste sertão da alma “tudo é perda, tudo quer buscar, cadê?” (na lista, a versão de André Mehmari e Ná Ozzetti, do álbum “Piano e Voz, Vol. 2”, de 2006).
Já “Buriti” envereda pela riqueza maior do desejo e da expressão erótica feminina, portanto a linguagem (criação) aqui se desdobra, entranhada, como caberia a um artista do tamanho de Guimarães Rosa .
É vasta a literatura sobre as relações entre sexo e linguagem.
Me atenho a George Steiner (1929-2020), que escreveu um cabedal nessa linha.
Numa entrevista à jornalista francesa Laure Adler (em livro não publicado no Brasil), diz o mestre que raramente se pode “acrescentar uma nova possibilidade de viver o eros aos repertórios das percepções, da sensibilidade humana e da sensibilidade linguística”.
Um pouco antes, comenta esse autor:
“Sabemos quase nada sobre o contato entre o sistema chamado parassimpático (...) e os centros cerebrais que controlam a linguagem. No entanto, o homem é um animal dotado de linguagem e a sexualidade humana está repleta de elementos linguísticos aos quais raramente se adicionam elementos novos… Trazer algo novo aos recursos eróticos de uma civilização é raríssimo, inclusive para um grande escritor.”
Em outras palavras, o sexo é uma frustrante armadilha para escritores e escritoras, mesmo muito bons.
É fácil um texto desandar no erotismo, e o sexo desinflar na monotonia do dèjá-vu.
Devemos pôr de lado a pornografia e suas “imundícies infantis”, como diz Steiner de certas escritoras francesas, mas também carradas de escritores.
No “Buriti”, a linguagem é explicita como vínculo erótico, ou melhor, o vínculo erótico da linguagem é literal. Rosa é um raro.
Leandra (Lala, Lalinha) inventa jogos de seduzir com o sogro, iô Liodoro, viúvo que mantém campesinas à disposição, para dar-se alguma vida sexual, cavar um veio na mina de prazer que ela guarda em si.
São conversinhas noturnas, encontros na sala de jantar. Ela endireita os cabelos, veste uma “meiga camisola”, por uma vez usa um peignoir vinho escuro, calça chinelinhos de salto. Ela lhe faz perguntas sobre sua roupa, o desenho do corpo e suas partes, ele vai assentindo, apenas.
Lala sente, percebida, esperta, que contenta o sogro — “um homem pelo direito, das antiga”, se diz antes no texto — ao lhe oferecer uma espécie de preliminar como interposta e figurada amante:
"E, sim, no quarto, já deitada, ela compreendeu. Ele saía, montava a cavalo, ia ver a mulher baiana. Ia sôfrego, supremo, e era a ela, só a ela, que aquele impetuoso desejo se devia. Ah, Lala, terrivelmente desejada. De si, vibrava. Ouvia-o galopar, ao longe? Ela podia amar-se, era bela, seus seios, o ardente corpo, suas lindas mãos de dedos longos. Sentia-se os lábios úmidos demasiado, molhados, como se tivesse beijado, como se tivesse sugado, e era uma seiva inconfessável. Depois, um deixo amargo, na boca. Assim adormecia."
Leandra, Lala, Lalinha e Maria da Glória, Glória, Glorinha são jovens, bonitas, plenas e ávidas.
Ambas foram abandonadas. Uma pelo marido, e logo trazida da cidade pelo sogro, por garantias, sistemas, outra pelo destino, enfurnada nas terras do pai depois de estudar em colégio de freiras.
Cresce uma amizade e uma afinidade entre elas, na pura alegria de terem uma à outra no Buriti Bom, fazendão perdido nos confins das veredas, propriedade “de um dos homens mais ricos deste sertão do Abaeté”.
Rosa dá contornos muito precisos às personalidades das duas mulheres.
A libido brota como flores no falar, até por brincadeira, certas coisas entre si, no caule das palavras, conversinhas de mulher, da beleza de seus corpos, das vontades e quereres, da excitante safadeza alheia, do suposto pecado de fantasiar-se o prazer.
A inocência solta e atirada de Glorinha, ainda virgem, contrasta com a vivência desafortunada de Lala, cada qual na sua possível conexão no circuito entre desejo e linguagem.
Aqui, Lalinha se sente objeto do olhar guloso e babão de Gualberto, amigo da casa, a quem já volto:
“(...) O cúpido olhar do homem queria atingir sua recôndita nudez, fazê-la frágil, babujá-la. Mas, amplamente no belo casaco marrom, de grandes bolsos onde ocultava as mãos, ela se sentia escudada, escondidazinha, fora do carnal alcance. A coragem que aquele casaco parecia dar-lhe! “Porco...” — pensou; ... “Sórdido, indecente...” —; mas não era uma sorvível delícia? “O verdadeiro amor é um calafrio doce, um susto sem perigos...” Durara só um instante. E — se disse — Glória? Não, não. Reprovava-se ter imaginado. Glorinha era lisa e jovem, uma sertaneja, nunca em sua vida haveria de experimentar o requinte de prazeres assim, com que ela, Lala, se mais-sentia. (...)”.
“Se mais-sentir”. Rosa é raro, redigo.
E o “sertão é de noite”.
E na noite não há silêncios, exceto silêncios entre os rumores da natureza e das criaturas que operam e penam em seu dentro, e de cuja existência o insone e assombrado Zequiel, dito “Chefe”, personagem fascinante, dá conta distintamente.
A vida, quando faísca e pulsa, quer mais de cada ser, destina, determina. Essa energia, esse ardor, se misturam; corpos falam, dão-se iniciativas, inventam línguas.
Rosa campeia a fortuna erótica nas duas mulheres contra a rudeza crua dos homens carnais, homens vapt-vupt, aquém do amor mais nuançado.
São idiomas diferentes, díspares tantas vezes — ainda que a “tradução simultânea [seja] o orgasmo” (Steiner).
Rudeza masculina com a qual uma mulher desejante precisa se ver, precisa conformar aos próprios sentidos, às próprias vontades.
O artista trabalha em zonas crepusculares, em pleno sol das almas, cada leitor que distinga o que se conta, tire véus, refeito no próprio conto, no singular das vidas.
Glorinha, premida, explosiva, em seu curto repertório sexual não suporta mais esperar por Miguel, a quem vira uma única e bastante vez, quer ter um qualquer, pois que seja nhô Gualberto Gaspar, o fazendeiro vizinho, meio maganão, que ela até pode fazer desejável, um instrumento.
É dele o primeiro conhecimento, macho, que temos de Glória, quando Gualberto recebe o moço Miguel, seu antípoda, algo poeta, e se refere, no discurso livre da prosa, à família do suposto compadre:
"Essa, iô Liodoro a levasse em cidade, se casava mais depressa do que viúva rica. Como que ela estava no ponto justo, escorrendo caldo, com todos os perfumes de mulher para ser noiva urgente."
Glorinha vai se deixar seduzir, divertida, na reunião familiar noturna, com prosa, jogo de cartas e algum vinho adocicado.
Gualberto, hipocorístico Gual, dorme essa noite no Buriti Bom, oportunidade para tocaiar Glorinha no sono solto do casarão.
Já estamos com as duas amigas no quarto de Lara, depois:
“(...) Já a abraçava. Não soube como acendeu a luz. E as duas estavam de pé. Glorinha, o bater de seu coração, um rubor, ela transtornada. — “Entrei, Lala... Sua porta estava aberta...” Ofegava. Escondeu as mãos. — “...Você deixou a porta aberta...” Ia chorar? As pupilas aumentadas, os olhos, grandes, claros, árduos. Os cílios, em, em, se molhavam? — “É horrível, Lala... É horrível...” As mãos tremiam-lhe. Arrimou-se, num abraço, e não podia chorar, ou não queria. Sentou-se na cama. — “Lala... Meus cabelos estão pesando...”Tinha taramelado a porta. Súbito, riu, baixinho, defendia-se do ansioso olhar de Lala, que lhe apertava fortemente o braço, que se debruçava para seu rosto, como se quisesse descobrir não sei que vestígios, farejasse-a, inquirisse. Ia bater-lhe? E Lala, encarniçada, soprou, sibilou: — “Glória... Não minta! Você esteve no quarto de nhô Gaspar!?...” E Glória, se tapando com as mãos, abrira vasto os olhos: — “Não, Lala, não! Não fui, não estive... Juro! Juro!... Que ideia...” Sorriu tristinha, ainda aflita. Lala recuara um passo. — “Oh, Lala, seja boazinha para mim... Não estive no quarto... Foi no corredor...” E, rápido, como se precisasse de coragem para logo explicar-se: “...Ele me abraçou, estava me beijando... Mas, depois, me apertou, parecia dôido... Oh, Lala, não judia comigo... Não aconteceu nada, juro, só ele me sujou... Só...” Lala recuara mais, mas se distendia — para vê-la melhor? — no semiescuro do quarto. Glória — o olhar quebrado, descalça, a camisolinha branca, o busto, os seios redondos, o homem bestial a subjugara... — “Diga, meu bem, Glorinha, diga: ele te sujou... Onde? Onde?!” “— Mas, Lala! Você está beijando... Você...” Oh, um riso, de ambas, e tontas se agarravam. — “Lala, imagine: ele estava de ceroulas...” ...Seus corpos, tão belas, e roçarem a borra de coisas, depois se estreitarem, trementes, uma na outra refugiadas... Mas — “Não!” — ela disse. (...)”.
A vitalidade de Glorinha e Lala se integra ao Buriti Bom, mas também desagrega o lugar, todo o sertão é tensionado pela energia gerada no tortuoso desejar humano.
Tudo conspira para perturbar a paz, da qual se foge, enquanto se pode, como o diabo da cruz.
Steiner também fala no “amor poliglota” na obra de Giacomo Casanova e em “Lolita”, de Vladimir Nabokov, como exemplos, e na multiplicidade de traduções possíveis, e na vastidão de repertórios e gírias sexuais de cada povo.
Afinal, como na canção de Cole Porter, “Let’s Do It (Let’s Fall In Love)”, “Façamos” na versão de Carlos Rennó (gravada por Chico Buarque e Elsa Soares), pois se até
“(...) rouxinóis, nos saraus, fazem
Picantes pica-paus fazem
Façamos, vamos amar
Uirapurus, no Pará, fazem
Tico-ticos no fubá, fazem
Façamos, vamos amar
Chinfrins, galinhas afins fazem
E jamais dizem não
Corujas, sim, fazem, sábias como elas são (...)”
Fala também no apego erótico ao texto ou à imagem, conforme o freguês, se mais dado a ler ou a ver, quando não às duas coisas juntas, como é corrente:
“Masturbar-se a partir da linguagem é muito mais intenso. Para alguns, a palavra é mais intensa que a imagem; para muitos outros, a imagem tem mais força, ou a combinação de ambas”.
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Tenho uma relação tardia com JGR, e tiro muito proveito disso. Talvez os livros tenham um tempo em cada caminhar. Adiei “Grande Sertão: Veredas” para meus 40 anos. Vieram “Primeiras Estórias”, “Sagarana” e tal. Ler, logo reler (para escrever aqui) “Noites do Sertão” já em meus 60 é uma sorte, pura dádiva ter uma obra dessa riqueza à mão, primeira vez, neste quarto da vida.
*
“Buriti” teve sua adaptação no cinema, “Noites do Sertão” (1983), de Carlos Alberto Prates Correia, disponível no YouTube, com bonita trilha de Tavinho Moura, a começar da canção-tema, em parceria com Milton Nascimento, que até atua no filme.
“Noites do Sertão” é uma toada sertaneja deliciosa, gravada por Milton no álbum “Encontro e Despedidas” (1985), em versão instrumental por Tavinho Moura (álbum “Caboclo D’Água”, 1993), cantoras como Cida Moreira e, recentemente, por Monica Salmaso e André Mehmari, no álbum “Milton” (2022).
A letra diz:
“Não se espante assim meu moço com a noite do meu sertão
Tem mais perigo que a poesia do que o julgo da razão
A tormenta gera histórias é tão vida quanto o sol
São cavalos beirando o rio, é o corpo da menina ofegante ali do lado
Ansiosa pelo tato do carinho arrebatado do calor da tua mão
Não se engane que o silêncio não existe no anoitecer
Fala mais vida que a cidade, tem mais lenda a oferecer
Não demore ela é donzela mas conhece outra mulher
Seu desejo e a madrugada só esperam teu carinho
Quando o ato terminado
Chegue perto da janela olhe fora e olhe dentro
A paisagem se molhou”
Um filme
Inácio Araújo escreveu sabiamente na “Folha” de “Ficção Americana”, a boa comédia com Jeffrey Wright disponível no Prime Vídeo e, creio, agora também nos cinemas. O filme do diretor estreante Cord Jefferson, baseado no romance de Percival Everett, é uma brisa (que seja sinal de um vendaval a vir) de inteligência sobre o calor da pregação identitária e racial, que é repetitiva e tacanha em toda parte. Tem coisas boas no Oscar este ano. Nem por isso volto a ver xaropada.
Um recadinho
Escrevidas destina-se a leitoras e leitores Pro, se você me entende, e estou convicto de que sim, ou não chegaria aqui. Se deseja me escrever diretamente, tenha um sugestão, uma queixa, um não-sei-quê, utilize o e-mail siuvesescrevidas@gmail.com.
Playlist da edição
Como a lista saiu menor, aproveitei o tema da semana para acrescentar a menos conhecida e também extraordinária versão de “Mar e Lua”, de Chico Buarque, com Toninho Horta (“Songbook Chico Buarque, Vol. 7, 1999) e “O Coco do Coco”, de Guinga e Aldir Blanc, com Leila Pinheiro (“Catavento e Girassol”, de 1996), duas ardorosas reverências masculinas à sexualidade da mulher.