Maninhas
"Ambos passamos a nos representar — a nossa condição familiar — mano e maninha mano a mano; ela, dez anos mais vivida — já a maninha do Chico, a maninha de “Maninha”, viera ao mundo sete anos antes"
(Leitora amiga, amigo leitor, bem-vindos a bordo desta canoa furada do jornalismo profissional e adjacências virtuais.
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Na próxima coluna (19/09), atualizo a declaração de princípios e publico um “balancete”. O mundo nunca mais será o mesmo (não me tome por maluco, se puder), quando o texto viralizar, prometo.
Grato pela leitura.)
Fazia então um cursinho, o Orvile Carneiro. Ia ingressar na Escola Técnica Federal de Minas Gerias — anos antes da era Cefet. Vivia com a minha gente em Pedro Leopoldo e tomava o ônibus da empresa Zezé para o Belo, às 5h20 da madruga (o preço da passagem custava o equivalente a um maço de Hollywood, ou uma Bhrama, conforme registro de um camarada); já na rodoviária, caminhava até a sede do Orvile, então na rua Ubá, no Colégio Batista.
Aprendia a tocar um violãozinho.
Quando podia, comprava uma revistinha de cifras, como a “Violão & Guitarra”, e nem sonhava com o advento da internet.
Foi por essa época que me apaixonei para sempre por "Maninha", de Chico Buarque, desde que ouvi a singela valsa pela primeira vez, provavelmente no começo de 1978, no dueto entre ele e a irmã Miúcha (Heloísa Maria Buarque de Hollanda – 1937-2018), a quem a canção fora dedicada.
“Maninha” era faixa do LP “Miúcha e Tom Jobim” (1977).
Na breve introdução da melodia, o arranjo de Tom combina flauta e violoncelo, e logo, no cantábile, seu piano “econômico” (“só as melhores notas”, ele brincava) terça com um violão memorável, alicerçados no baixo acústico.
De tanto querer aprender a tocar "Maninha", ignorada por amigos violeiros, um belo dia a deparei todinha harmonizada.
Foi quase uma epifania.
Retenho a alegria infantil que me deu ao folhear a revista e ver aquelas cifras.
Enquanto já decorava — dizendo muito prazer a acordes como um inicial e inesquecível Aadd9 — me equilibrava em pé, espremido no lotação para a Escola Técnica, onde, então, já cursava o noturno de química.
Logo aprendi tocar e cantar, desafinado, a canção.
“Maninha” sintonizava o romântico adolescente que eu, mais ou menos, ainda era, e só podia ser naquele tempo — hoje nem como ficção. Um adolescente diante da vida adulta que dá sua piscadela de adeus à meninice.
Era como, nas egotrips da idade, houvesse uma razão de ser nas coisas, uma transcendência, em lugar da fria e pura indiferença do universo.
A valsa calava precisamente naquele intervalo, transição ou, como se diz agora, naquele ciclo.
(Aqui preciso conferir a propriedade de “calar” no meu uso do verbo. Santo Houaiss que me respalde:
“7 t.i. (prep.: em); p.metf. atingir ou alcançar o âmago, a essência de (algo) ou o íntimo de (alguém), produzindo impressão forte, profunda ‹aquelas palavras calaram fundo em nossa consciência›)”
A letra, que vai abaixo, tem a poética buarquiana em seu grau mais luminoso de lirismo e abertura à sensibilidade e inteligência do ouvinte.
“Maninha” é uma canção sobre o tempo derramado, claro.
Mas que será este Ele, entidade que chega para acabar com a brincadeira, dar um fim às tramas que se teciam, aos jogos de “agora eu era” isso e aquilo (como em “João e Maria”), e desandar sonhos que se encarnavam?
“Pois nunca mais cantei, ó maninha
Depois que ele chegou”
No chão que Ele pisou, onde agora só dá erva daninha, antes havia luares dos sertões, fruta no capim, jardim coberto de flor; também se podia crer na anunciação de uma cantiga.
Ah, mas esse futuro presentificado, ou o próprio Tempo, com o passado incluso, que nos amedrontava com seu rude pisar, um belo dia, babau, nunca mais.
Donde o primoroso fecho da canção:
“Mas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Pra nunca mais voltar”
Hoje, ao ouvi-la no bis da turnê "Que Tal um Samba" (2022/23), dividida com Mônica Salmaso, “Maninha” ainda ecoa em mim, profundamente.
Não me emociona menos que há quase meio século, embora carregue sentimentos e, por sinal, apreensões, mais difusos.
Ouvir "Maninha" aos 16 anos era como ostentar um apêndice na alma diante de um espelho onde se projetasse um mundo cheio (eivado?) de amor, “canções, aventura e magia” (recorro ao recitativo do samba “Testamento”, de Toquinho e Vinícius).
“Maninha”, então, me fazia acreditar que o dia ia raiar como anunciara a própria cantiga.
Sopravam brisas de esperanças em meus eflúvios mais patéticos, como a ilusão de me tornar um adulto fiel àquelas sensações primaveris, fiel a mim.
Era como aquele rapaz, alto além da conta, magro e desconjuntado, se encantava com a revelação de uma linda melodia e com a poesia, era como o varapau se comovia com a beleza.
Mas, como é praxe, vida vem e nos leva (ponho "O Velho Francisco" neste choro).
Ele chegou por estas bandas pezunhando tudo.
Como é comum em nossa espécie, como comandam nossos genes — tão egoístas, ai de nós — ou como se entenda, nos tornamos mais carnais, menos telúricos, e toda ternura se relativiza, passa a ter hora.
Vida veio e, por meados da segunda década do milênio novo, Ele, que então já era, nos levava, melhor dizer, nos amputava de dois manos e uma maninha, assim de roldão, com nosso tronco paterno há muito ceifado. Depois disso, só erva daninha.
Mas não. Seguimos por aí, outra maninha e o macróbio caçula lá de casa.
Ambos mutuamente passamos a nos representar, então — a representar nossa condição familiar — mano e maninha mano a mano; ela, dez anos mais vivida — já a maninha do Chico, a maninha de “Maninha”, viera ao mundo sete anos antes dele.
E lá vamos nós, mano e maninha, cada qual como pode e se sacode.
E ela pode muito mais, desde já.
Se fosse árvore, era ela um frondoso ipê-amarelo em plenitude, ou uma de suas amadas azaleias rosa da serra de Petrópolis; já ele, um mero arbusto à sombra, se muito um assa-peixe silvestre.
Mais singelamente, afirmo que minha maninha guarda a estranha mania de ter fé na vida, como uma Maria de Milton & Brant (que ouviremos na playlist da edição com Mercedes Sosa).
Minha maninha segue com os seus e leva seus mortos num relicário, atenta e lúcida guardiã.
Mas basta de sentimentalidades, há uns tempos meu coração deu de zabumbar esquisito, devo me cuidar, ir mais devagar pela estradinha dos sessenta.
Ela, maninha, é que sabe, eu é que sei.
E sabemos mutualmente de coisas, inclusive que não sabemos de coisas mutualmente, coisas de que não se pode saber.
“Nenhum ser humano pode realmente entender outro ser humano, e ninguém pode providenciar a felicidade do outro”, anotei num Escrevidas desses, de umas releituras de Graham Greene.
Uma pena, não é?
Não é bem assim.
Alguma, ao menos, episódica, logramos providenciar, ainda que saibamos que a felicidade, no dizer de dois artistas geniais e generosos,
...ӎ como a pluma que o vento
Vai levando pelo ar
Voa tão leve e tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar...”
Quero ainda dizer que "Maninha" na madureza abre uma janela a outras sensações.
Aprendemos que luares iluminam jardins cobertos de flor mesmos depois de Ele ter pisado no pedaço.
Sucede, por certo, de voltar a pisotear tudo de novo, e germinar sua tiririca.
Enquanto seguimos a nos torturar por saber que essas idas e vindas terão termo.
“Maninha” — por essa Chico não esperava, esperava? — se torna a um tempo modinha proustiana, madalena a nos guiar a um tempo perdido, e refresco d’alma, mesmo que com seu travo amaro.
Em seu cerne, “Maninha” é uma ideal canção adolescente, canção sonhadora apesar de si mesma, apesar da desilusão que instila.
É uma valsinha para sonhar, até não mais acordar.
Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertõesA roupa no varal
Feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas cançõesSe lembra quando toda modinha
Falava de amor
Pois nunca mais cantei, ó maninha
Depois que ele chegouSe lembra da jaqueira
A fruta no capim
O sonho que você contou pra mimOs passos no porão
Lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmimSe lembra do jardim, ó maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisouSe lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda souQuerendo acreditar
Que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciouMas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Pra nunca mais voltar
Será (grande) arte?
Santo Houaiss põe assim o significado de Páthos, palavra de origem grega e conceito fundamental na crítica de arte:
“1 qualidade no escrever, no falar, no musicar ou na representação artística (e, p.ext., em fatos, circunstâncias, pessoas) que estimula o sentimento de piedade ou a tristeza; poder de tocar o sentimento da melancolia ou o da ternura; caráter ou influência tocante ou patética ‹falta p. à sua escultura›
2 na experiência do espectador, leitor etc., sentimento de dó, compaixão ou empatia criados por essa qualidade do texto, da música, da representação etc.
3 hist.art esp. na antiga arte grega, qualidade do que é transiente ou emocional (p.opos. ao permanente ou ideal) f. aport.: patos; cf. éthos it”
Pois há uma passagem de “Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você” (2022) em que Roberto de Oliveira (diretor e roteirista, ele próprio personagem da história) lembra como o filme “Fale com Ela” (2002), de Pedro Almodóvar, levou o mundo a descobrir as maravilhas daquele álbum de 1974 (que por pouco não gora).
Não falta páthos ao documentário de Roberto. Já o vi cinco ou seis vezes, a primeira na incomparável tela grande; recomendo demais.
Almodóvar introduz Caetano Veloso no longa-metragem, na tocante sequência de “Cucurrucucu Paloma” (Tomás Mendes Sosa, 1927-1995), mas o diretor espanhol acena à música brasileira em outro momento, a onírica tourada, que vemos em flashback e “câmara lenta”.
A cena deve seu tônus emocional a uma canção de Jobim e Vinícius, faixa do LP “Elis & Tom”.
Ouvimos “Por Toda Minha Vida (Exaltação ao Amor)” com Elis, enquanto Lydia (Rosario Flores) confronta na arena um deslumbrante miúra e se entrega ousadamente às artes de seu ofício.
A cena é lancinante e desvela a quintessência do páthos.
Vemos, sentimos, a toureira em ação — antecipamos seu drama, já sabendo que aquilo vai dar ruim, — a tensão do público e o olhar enamorado de Marco Zuluaga (Darío Grandinetti).
Amor e morte duelam no cortejo do touro — essência da tauromaquia — e vibramos com a força de ambos.
Ela, alta e esbelta, superfeminina e superelegante em seu “traje de luces”, de um lado, do outro, o touro, negro monumento natural — puro músculos, potência e instinto de sobrevivência.
Na interpretação de Elis, a canção amalgama e como que estilhaça tudo, como que toureia nossa humanidade, empatia e capacidade de amar, vai ao fundo do coração.
Se isso não é grande arte, nada sei, nunca soube ou saberei da grande arte.
E a essa altura do certame, aliás, isso pouco me importa.
Para ver a cena, vá aqui, ou click no link da tela abaixo, no caso se aparecer a informação “vídeo indisponível”.
Por Toda a Minha Vida (Exaltação ao amor)
Tom Jobim e Vinicius de MoraesMinha bem-amada
Quero fazer de um juramento uma canção
Eu prometo, por toda a minha vida
Ser somente teu e amar-te como nunca
Ninguém jamais amou, ninguém...
Minha bem-amada
Estrela pura, aparecida
Eu te amo e te proclamo
O meu amor, o meu amor
Maior que tudo quanto existe
Oh, meu amor
Acho magistrais o ondular e o modular da melodia em
Ser somente teu e amar-te como nunca
Ninguém jamais amou, ninguém...
Há muitas e belas versões de “Por Toda a Minha Vida”, gravada originalmente pela carioca Lenita Bruno (1926-1987) num long-play de 1959.
Recomendo algumas na playlist dessa edição.
Nenhuma delas, entretanto, sonha a profundeza, a elevação e, claro, o páthos alcançados por Elis.
Como diz Slavoj Žižek, “life is shit, enjoy!” (A vida é uma merda. Desfrute!)
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