“Me chame de Jumenteu”.
A frase, a ecoar Ismael no começo do “Moby Dick”, romance clássico de Herman Melville (1819-1891), abre o “Diário de um Asno Ruminante”, ficção interrompida meses antes deste Escrevidas vir à luz.
A entrada é de 16 de junho de um ano pandêmico.
Em vez de caçar a grande Baleia Branca, o narrador do “Diário” caçará a si próprio.
Moby Dick é seu passado, que ele tentará arpoar, enquanto se vê no presente com a água no pescoço. E como um peixe a se debater em lagoa a secar, busca furiosamente um alento no futuro.
Não embarca no Pequod, o baleiro do medonho Ahab; vai a bordo de uma canoa furada.
E o capitão Ahab do Jumenteu não é ninguém menos que a sua consciência mordida pelo Mundo Cão.
A epígrafe do “Diário” é uma anotação de “Do Sentimento Trágico da Vida”, do filósofo basco Miguel de Unamuno (nosso jerico leu mais do que devia):
“A consciência é uma enfermidade (...) E talvez a própria enfermidade seja a condição essencial do que chamamos progresso, e o próprio progresso uma enfermidade.”
Já nas primeiras linhas o narrador quer, com o perdão do verbo, entregar sinceridade a um destemido leitor:
“O que tiver de sair, pedra, poema, cagalhão, cairá neste diário terrível”.
Assim começa o relato do Jumenteu.
O herói do “Diário” dificilmente terá a sorte do demoníaco Calibã, criatura de “A Tempestade”, revelada ao se dirigir a seu mestre, Próspero, já no final da peça shakespeariana:
“Farei o que me dizes. E de agora em diante serei mais sábio e buscarei a redenção. Fui mesmo um asno, sim, um asno tresdobrado (...)”. [Tradução de José Francisco Botelho.]
Jumenteu está fadado a se resignar a tal identidade, condição, de asno, asno tresdobrado.
A primeira nota do “Diário” termina assim:
“A resposta à pergunta ‘o que está errado?’, escreveu G.K. Chesterton — citou no jornal ‘The New York Times’ o colunista Ross Douthat — é, ou deveria ser, ‘eu estou errado.’
Se isso é uma cena teatral, ouvir-se-á um trovão no fundo do palco. Sim, o erro sou eu.”
Se fosse um filme, o “Diário” teria na abertura, obrigatoriamente, a canção “Meia-Noite”, desconcertante melodia de Edu Lobo com poema de Chico Buarque, composta para a peça “O Corsário do Rei” (de 1985; ouça, por favor, na playlist, sua versão mais tardia):
“Se a noite não tem fundo
O mar perde o valor
Opaco é o fim do mundo
Pra qualquer navegador
Que perde o oriente
E entra em espirais
E topa pela frente
Um contingente
Que ele já deixou pra trás
Os soluços dobram tão iguaisSeus rivais, seus irmãos
Seu navio carregado de ideais
Que foram escorrendo feito grãos
As estrelas que não voltam nunca mais
E um oceano pra lavar as mãos”
O Jumenteu é um realista dilacerado, claro, dado a ruminações, daí o título estrambótico do livro ideado.
O jegue é nosso irmão, canta Luiz Gonzaga citando padre Antonio Vieira no xote “Apologia ao Jumento” (dele com José Clementino), mas só é ruminante, claro, no caso particular e único do narrador do “Diário”.
O jumento é monogástrico, não tem rúmen.
Jumenteu deita no papel, declina, cada um de seus tormentos asininos, cada um dos remédios de sua farmácia espiritual, alguns faixa preta;
Narra as consultas com sua “alienista”, como chama a doutora psiquiatra que o assiste — eterno doente imaginário do dr. Bacamarte, no sanatório Casa Verde — e desanca obsessivamente um certo Miranda:
“17 de junho — Aniversário do Miranda, outro traste. Há anos nos propusemos, trastes, a ocupar uma sala com paredes de vidro no Museu de Artes e Ofícios, na praça da Estação, cá em Belo Horizonte. Nós dois e um diagramador de nossa época viveremos nessa jaula transparente no horário de expediente do museu. O espaço terá três mesas de fórmica com máquina de escrever, laudas de papel, fotolitos, lápis vermelhos de cera, canetas, réguas de paica, tesouras, cola, algumas cadeiras, araras com jornais impressos amarelados, garrafa de café, garrafa de uísque, garrafa de catuaba, litrão de cachaça, tudo que havia numa antiga redação de um jornal de papel. Haverá uma instalação moderna no espaço expositivo, som ambiente de um sampleado de máquinas de escrever batucando, um mix de vozerio e muita fumaça, a lembrar o consumo atroz de tabaco daqueles dias laboriosos, além de gritos, faniquitos e outras mumunhas que tais. (...)”.
Coisa de um ano depois, 28 de junho, Jumenteu reflete, profundamente:
“A Terra gira e o mundo é o mesmo, segue a normalidade necessária às economias, sejam industriais, financeiras, sexuais, sociais, familiares, penso assim. Não sei se bato a meta, como diz meu sobrinho sobre a sobrevivência dos homens de nossa família. Que devemos, homens, ser lá uns fracotes, na frase de Betty Davies, “Old age ain't no place for sissies”; costumamos bater a caçoleta antes da hora média de nosso tempo, não sei, portanto, e para quem me leu até aqui deve estar claro que o não saber vindo de um asno assumido não é bem metáfora mas vã tentativa de manter a lucidez, honrar a consciência parca que me resta, então não sei se vamos às planejadas 80 mil palavras (...).”
Mas qual a “perspectiva do narrador”? Trata-se dum simples alter ego do autor, duma autoficção moderninha, ou, mais que isso, da revelação de uma “voz” autoral a emitir longos orneios agônicos?
Por um lado, apenas um asno é capaz de não entender um mundo tão bem explicado, tão avançado, sugere Jumenteu, onde o certo e o errado serão sempre o certo e o errado para a maior parte da gente.
Os portais de notícia esclarecem tudo, o Big Data corrige as distorções de nossa memória, ou supre seus brancos, algoritmos apontam nossos desejos e devires, a IA faz nossos “para casas”;
Aplicativos nos tocam o tédio na cara;
Articulistas — Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, valei-nos — fazem um esforço tremendo para alcançar o revoo errante de uma borboletinha acima do banal e ser ao mesmo tempo o mais possivelmente “clicáveis”. É duro.
Por outro lado, um asno ruminante é um asno empacado, condenado a não sair do lugar.
Ruminar é um suplício, um remordimento sem fim de quem não tem uma boa série para maratonar todo santo dia ou, claro, um trabalho 7 x 24 para matar o tempo bem matado.
Acho que o Jumenteu já disse a que veio, dificilmente desencalha, desempaca desta finitude que são páginas em branco, desde sua inexistência.
Em 18 de agosto do primeiro ano do “Diário”, o Jumenteu se saía com esta:
“Me encontrei, me descobri neste novo ciclo esclarecido de autoconsciência. Sou um asno ruminante, um asno que leva a cangalha do sublime. Você, leitor, me faça o favor de aqui e acolá imaginar emojis adequados para preencher, realçar e colorir mentalmente cada tolice que escrevo. Não espere que um jerico aprenda a escrever na nova língua do Zap e abrace as novas formas de socialização.”
No dia seguinte entrava só uma marchinha de Fausto Nilo e Moraes Moreira na melancólica e linda versão de Monique Kessous:
“Pra libertar meu coração/ Eu quero muito mais que o som da marcha lenta/ Eu quero um novo balancê/ E o Bloco do Prazer que a multidão comenta/ Não quero oito, nem oitenta/ Eu quero o Bloco do Prazer/ E quem não vai querer.// “Mamã, mamãe, eu quero sim/ Quero ser mandarim/ Cheirando gasolina/ Na fina flor do meu jardim/ Assim como o carmim/ Da boca das meninas/ Que a vida arrasa e contamina/ O gás que embala o balancê (...).
Logo o Jumenteu parece saltar violentamente para se livrar da tal “cangalha do sublime” (e da moléstia) que o arrelia.
Em 5 de outubro é puro fel, escoiceia a própria sombra — e no dizer de Manuel Hidalgo, colunista de “El Espanhol”, numa resenha do último livro de Fernando Savater — talvez também esteja “impregnado pelo curare de amargura temperado com o aço picante da exageração”:
“(...) Como barata e rato sobrevivo nos escombros. Mato a sede no chorume que escorre da decomposição da cultura, da putrefação da poesia, da liquefação do cinema, da liofilização da literatura e das artes. Me acostumei ao xexéu. Despacho diretamente do lixão do milênio, como um idiota deserdado no mangue. Tento ancorar minhas ruinas no reich dos querubins que ungiram o ordinário, o chué, a merda perfumada com essências orgânicas santificada (...). Soçobro na trastaria.”
Na penúltima nota do “Diário” o Jumenteu pede penico:
“Me encorajo a (ao menos) abrir o arquivo Word desses diários. Emurcheceu tudo desde a última entrada.”
O resto é silêncio.
Música profunda
Perdi meu sábado de Carnaval, aliás, não, me achei na tarde de sábado de Carnaval ao ouvir boa música, grande música.
O maestro Jacques Morelenbaum fala em “música profunda”, Francis Hime cunhou “almamúsica” ao nomear um tema seu.
É a música onde encontro, como sugeri na playlist do Escrevidas semana passada, alguma “beleza concentrada”.
Há bastante coisa nova e ótima, de compositores e artistas jovens, em seus 30 ou 40 anos, se esforçando para mostrar sua criação na era do streaming. Poucos conseguem, e isso diz muito sobre seu feito.
Saiu, a propósito, no streaming, a gravação, pela Biscoito Fino, da live de Ayrton Montarroyos com repertório de Caetano, que é de 2021.
É tão boa — um tanto mais sofisticada, pelo esforço interpretativo do versionista — quanto a de Xande de Pilares, também dedicada ao artista e lançada no segundo semestre do ano passado pela Gold Record / Uns Produções.
Não tenho outro qualificativo senão sublime para a voz de Montarroyos.
A MPB manda lembranças
Destaco como maior novidade do ano, por inteiramente autoral, este “Pequenas Impressões sobre o Caos”, quarto álbum do compositor, cantor e pianista Breno Ruiz.
Há pelo menos cinco rubis entre as ótimas 13 faixas do álbum de Breno, todas em parceria com Roberto Didio, um raro letrista que vai se firmando nessa arte, nas últimas três décadas.
Maestro Cristóvão Bastos, Guinga, Renato Braz e Miguel Rabello gravaram com Breno, que ainda conta com o egrégio violão de João Camarero em quase todas as canções.
As canções-rubis são “Semafórica”, uma cândida valsa sobre a violência naturalizada no cotidiano de uma grande cidade como o Rio de Janeiro, com “balas a todo vapor/ balas no retrovisor.../ balas perdidas”;
A marcha-baião “Camelódromo”, que explora o caos organizado dos ambulantes a lutar contra fiscais da prefeitura;
Já o blues (fox?) “Médios e Graves” é uma curtição com o que tascávamos de “filistinismo” da burguesia em épocas mais felizes para a cultura, ainda que, talvez — faz tanto tempo, — mais hipócritas;
A balada “A Tempestade” canta a fragilidade humana diante das intempéries cada dia mais catastróficas, ou anuncia a chegada do apocalipse, conforme se veja;
E deixo por último a primeira, “Quase Nada”, algo realmente novo a se brindar.
Uma melodia tortuosa que se quebra e se agita põe literalmente no divã do psiquiatra o drama de novos artistas tangidos pela revolução tecnológica, fala, nas entrelinhas, de quem nasceu depois da era de ouro da canção e do disco, da importância que deveria ter Pixinguinha para a rapaziada, e proclama que “Jobim venceu a bruxa/ brindando com Vinicius.../ gravando com Sinatra...”. É o rubi que brilha mais no “disco”.
O álbum em tudo honra a preciosa tradição de nossa música popular, seja pela riqueza de melodias e harmonias e letras, seja pela síncope do canto — no belo registro grave de Breno, seja na exploração da temática social.
Ruiz e Didio enfrentam com galhardia sua angústia da influência, digamos de um Dori Caymmi ou de um Edu Lobo, até de um Egberto Gismonti, que entre tantos inventores mandam boas lembranças neste “Pequenas Impressões sobre o Caos”.
Compositor e letrista trabalham com impressões, experimentos musicais e experiências de vida de sua própria época, por certo, e se revelam orgulhosos de sua herança comum, sem medo de explorar o terreno da ironia — que não prescinde da inteligência para se semear sentidos, — temor que costuma inibir e até anular artistas dessa mesma geração, tão autopatrulhada.
Cacaso, um case
Saiu o primeiro single de “Cacaso – 80 Anos”. Ney Matogrosso faz “Lambada de Serpente” (Djavan e Cacaso).
É buena, buenísima notícia que venha aí uma homenagem a Cacaso, poeta e letrista pouco reverenciado, antes pouco conhecido até, mas, se vê, com lugar assegurado no panteão imaginário da canção popular do Brasil.
Na playlist da edição ponho “Sem Fim”, balada de Novelli e Cacaso.
Adoro a gravação de Nana Caymmi, de 1979, mas escolho a do álbum mais recente de Barbara Casini com canções de Novelli e seus parceiros, lançado em 2020 — espero que a homenagem a sair inclua essa música tão pouco gravada (misteriosamente).
A versão é dividida com Danilo Caymmi e conta com o violão identitário (único no gênero) de Toninho Horta.
Olívia e Hime
Falei no “Almamúsica”, de Francis Hime, por voltar a ouvir, no sábado de Carnaval, este disco excepcional da Biscoito Fino, lançado em 2011, com versão ao vivo no ano seguinte.
Todo o gênio de Hime e sua frutífera parceria com a mulher Olívia se assentam neste trabalho concebido para piano e voz.
Das seis faixas, cinco têm a forma de suíte, em que não falta a dita beleza concentrada, ou “música profunda”.
O casal tomou para alinhavar as faixas, como uma espécie de vinheta, a melodia perfurante de “Minas Gerais”, parceria do baixista Novelli com Ronaldo Bastos, conhecida desde o “Geraes” (o LP é de 1976), na voz de Milton.
O gosto cultivado, a beleza e o sublime nortearam a escolha do repertório de “Almaviva”.
Uma das faixas, para mencionar apenas esta, traz uma citação do “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner, que é costurada a “O Que Será [À Flor da Pele]”, de Chico Buarque, logo à “Balada de um Café Triste”, de Hime e Geraldo Carneiro, e à própria “Almamúsica” de Hime.
É isso, então, por ora. Espero que tenha gozado o Carnaval, festa melhor não há.
Salve e saravá!
Caras leitoras, caros leitores:
Avisei a vocês de minha dengue/perrengue, estive mais de uma semana fora de combate mas pude retornar semana passada.
O Escrevidas, esta newsletter que prefiro chamar de coluna, com página no Substack, segue ainda gratuita.
Rogo aos assinantes 0800 que considerem passar a pagos, e que me ajudem a manter e divulgar esse ganha-pão.
Muito obrigado!