Meus pecados olímpicos
Das vésperas de Munique 1972 às portas de Paris 2024, confesso culpas e tentações
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Perdoe, padre, porque pequei.
Fui pecador olímpico, digno do ouro em várias modalidades.
Sabe, padre, posso apresentar a suma, um resumo da ópera.
Em síntese, o seguinte:
“Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).”
Sumarizei aí minha culpa, minha grande culpa, minha máxima culpa, por interposto poeta, padre, que logo creditarei — espero que não seja mais um pecado, se for, dependure, por bondade.
Santo Agostinho cogitava se uma criança já não pecava por chorar pelo seio materno. Sinceramente, não me vejo um pecaminoso assim tão precoce, o que o senhor acha?
Agora, disputo os jogos do pecado desde menino adolescendo, já viu, acho que desde Munique 1972, quando chegava aos onze aninhos.
A propósito, o senhor já leu “O Complexo de Portnoy”, do Philip Roth, não leu? Sim, pra melhor entender seu rebanho, claro, pois então.
Ou mesmo, talvez, um pouco antes daquele certame trágico na Alemanha, com terrorismo e tudo, eu já havia penetrado a olímpica “Idade do Serrote”, na consagrada expressão do Murilo Mendes.
Por volta de Montreal 1976, algo equidistante, enjoado de ouvir o hino americano, resolvi pecar contra a castidade, pra relaxar.
Como Agostinho, começava a frequentar certos antros de sinal vermelho, padre.
Isso era muito natural a um rapaz naquele tempo, antes da revolução, ou antes de a revolução se consolidar, o senhor, que é jovem, pode pesquisar, indagar sacramente ao Gemini do Google.
É, eu sei, está na Bíblia, é coisa ancestral a fornicação; que nome.
Ainda como Agostinho, aliás, afanei umas frutas, não peras mas algumas doces mexericas, em pomares alheios, com espírito inflado e água na boca.
Já por Moscou 1980, com o boicote americano e tudo, e a melancólica alegria por João do Pulo, não me fiz de rogado, competia a plenos pulmões.
Ora, eram meus quase vinte anos.
Até íamos à missa, então, no interior, era de rigueur.
Mas antes e depois do rito nutríamos certas ideias fixas, inclusive ao sonhar, com marcas de amores quiméricos nos nossos lençóis.
Não fui um moço tão diverso assim, afinal, e nos movíamos, como verdadeiros atletas, à volta daquelas ideias, daqueles ideais a frutificar nas glândulas.
Por aí me tornei um carnavalesco atroz, não nego.
Me apliquei, guloso, à folia, metódica e alucinadamente, como se nada existisse ante e depois do reinado de Momo.
Para me ver crucificado, desfeito em cinzas, na quarta-feira — com o perdão da blasfêmia... — descrente de tudo, padre, no fundo do poço.
Veio Los Angeles 1984, como esquecer Joaquim Cruz nos 800 metros?
E mais um nauseante festival de "The Star-Spangled Banner" (A Bandeira Estrelada), o hino do império americano, incrementado pelo boicote soviético, que dava o troco em Tio Sam, poxa vida.
Melhor interpor aqui um alerta, trigger warning em português corrente, ao leitorado mais sensível.
Atenção: minha próxima confissão, gente, pode chocar pela crua descrição de práticas muito prejudiciais à saúde.
Pois, a caçoar da autobiografia do Neruda, e a caronear na paródia do Jaguar, confesso que bebi, padre.
Bebia-se de verdade, o senhor, que é novo, deve ter ouvido falar das peripécias de certas turmas do funil espalhadas pelo país e eternizadas em nosso cancioneiro… pode me faltar amor, isso eu até acho graça, só não quero que me falte… esse tipo de coisa.
Bebíamos como polacos, como irlandeses, como gente grande.
Bem cedo já entornávamos direitinho.
Álcool e tabaco eram belos companheiros, então.
Tínhamos que beber, fumar, ainda meninos, praticamente. Eram fundamentos de um rapaz viril. Mas as meninas não ficavam atrás.
No colégio, fumava-se em sala de aula, dá pra imaginar? Quanto tempo faz isso, três séculos e fumaça? Não! Quarenta e poucos anos.
Se pequei, faço minha contrição, mas me é difícil abjurar de certas más companhias amáveis enquanto duraram.
Estou com o Vinícius, também nunca vi boa amizade nascer em leiteria.
Um porre solidário, um cigarrinho de ofício, os belos maços de cigarro, um isqueirinho descolado, tudo não passava de estações, socializantes ou solitárias, na passagem das horas.
O Chico aliás, escrevia ao Boal que a gente ia tomando, que a gente fumando, que sem a cachaça, que sem o cigarro e tudo não era fácil segurar o rojão.
Não vou negar que vez ou outra experimentávamos uma erva do norte, e até tragávamos...
Ninguém adivinhava o subterfúgio daquele presidente, outro célebre homem do charuto, depois de Sir Winston Churchill e Herr Sigmund Freud. Bill batia um bolão, que pecador... Digressões, padres, perdão de novo.
Havia alguma oferta de chazinhos fúngicos de estação, bolinhas que-não-eram-mais-de-gude, rapés descoloridos, lencinhos molhados, mormente no Carnaval.
Por assim dizer, assim contar, eu competia em Seul 1988, Barcelona 1992, quando ganhamos uns ourinhos a mais, se bem me lembro...
Mas a verdade é que minha desenvoltura atlética, brincávamos, como “halterocopista” medalhista, se arrefecia em Barcelona.
Nunca mais cheguei mais ao pódio.
A lida adulta, como as ressacas, nos impõe obstáculos, então experimentamos, finalmente virtuosos, alguma temperança, ó céus, padre, fazer o quê?
Volto atrás, no entanto, àquele intervalo entre Los Angeles e Seul, quando cheguei até, antes da hora, a cometer algum ghosting, padre, e levei outros nas costas.
Recuando mais um pouco, de volta a Moscou, a Montreal, pequei contra a poesia.
Cometi versos esquálidos, tontos, que não deviam ter sobrevivido à própria infância. Soberbo, até guardei alguns.
Incorri em muita paixão, coisa de diabinhos, não é, meu pastor?
Algumas revelaram alcance galáctico. Mediam-se em anos-luz, conforme cada “afecção”, como ninguém jamais padecera na Terra, disso não duvidava.
Escrevia cartas luxuriosas, lia livros e revistinhas impróprios, dava jeito de entrar em filmes vetados a um “de menor”.
Quem diria que aquela atração pela indecência ia se naturalizar tanto no mundo, padre, se escancarar, com as graças da internet, para gáudio da meninada de hoje em dia?
Padre, meu rol de pecados já vai longe. Quantas ave-marias, quantos padre-nossos? Anote aí se preferir, não vá perder a conta.
Bem mereço todos os credos e salve-rainhas no agregado de vosso santo cálculo. Ainda circulam tais orações? Talvez, quem tenha menos de cinquenta anosprecise botar no Google.
Prometo cumprir à risca o rito da remissão, sem ajuda da inteligência artificial, ou do sampleado de um DJ, e assim pecar por fingido, padre.
Entre Barcelona 1992 e, digamos, Londres 2012, vivi outro gênero de “horas arco-de-triunfo”. Não cabem num confessionário nem terão interesse no além.
Uns pecadilhos, talvez, cometi aí, tudo coisa venial. Não vou abusar de seu tempo com isso, meu confessor.
Acho que também posso dar um salto com vara por cima do Rio 2016 e de Tóquio 2020.
Para cair em Paris.
Paris. Paris. Paris.
I love Paris, padre, como o Cole Porter.
Quisera poder disputar uma ou outra modalidade na paraolimpíada do pecado naquele burgo constelar, ainda que pecaminosamente quente por agora, praticar velhos e bons pecados, segundo os catecismos ancestrais.
Ainda que meus joelhos não possam ouvir falar em corridas e saltos, e meus braços não ergam mais que sacolas de feira.
Mesmo que os olhos não mais distingam o mundo com tanta nitidez, por cansaço, e toda essa joça que os poetas da melhor idade escamoteiam de seus ouvintes, quisera estar no páreo em Paris, padre.
Cair em piscinas azuis, me equilibrar na crista de ondas, rolar em pistas de Skate, dançar o breaking, bater e rebater no badminton, correr o rodo no curling, sei lá, remar um pouco no Sena... tudo, claro, tão flâneur quanto um Baudelaire, aquele ímpio chegado a um ópio.
Sobretudo disputar a maratona. Mas devagar, devagarinho, pra poder olhar Paris nos olhos.
Poder me arvorar por ruas, fachadas, vitrines, feiras, capelas, jardins, quadros, coisas grandes e pequenas
Levar uma semaninha inteira, quem sabe duas, para fazer os 42.195 quilômetros da prova, com paradas estratégicas em bons bistrôs e exame em suas cartas de vinho, padre.
Me perdoe, padre, por luxurioso, por pecar em pensamento.
*
Tudo isso nem as paredes ousava confessar, como a Amália Rodrigues, a Leila Pinheiro, o Roberto Carlos... — e agora confesso.
Sempre se pode anotar uma confissão, certo, bom vigário?
Me pergunto, blasfemo, a princípio, se o pecado faz falta ao mundo.
Tendo a crer que sim, um pouco.
Pois, ao menos, intensificava o prazer de certas transgressões, e podia, quem sabe, vez ou outro deter algum ato mais insanos, violento, mas deixa essa metafísica meia-tigela pra lá.
Escrevo, assim, dizia, com esta finalidade precípua: tirar meu tempo de mim enquanto meu tempo escorre.
Sei que se perde o equilíbrio entre o que se tira do tempo e o tempo de nós recolhe.
Muita vez, padre, desculpe a inusual locução machadiana, não tenho tirado que preste do tempo, o que é pecado, suponho.
Cumprir as horas como ainda nos cabem no pântano do cinza, ah, um dia, outro dia, outro dia. Que patacoada.
Sou muito sensível ao espírito do tempo, à ordem cultural, ao mundão de meu Deus, padre, e também ao calor excessivo e aos dias nublados, o que é mais pecar. Me diriam, nos bons anos, que isso era coisa de mariquinhas.
Pois coitado de um mariquinha.
Pecamos também por fadiga de material, de saco cheio, alguma ira ocasional em relação a esta ou aquela figura oficial perniciosa.
Padre, recorro no capital pecado da preguiça, preguiça do mundo.
Não confesso pra lamentar, padre, mas por imposição da vida mesma, que, à medida que é servida, escreve-se a si própria ou abraça o pó.
Orgulho não tenho mais.
“O orgulho [é] o deserto em que min estou”, no dizer do poeta supracitado.
Também, a propósito, peço vossa absolvição por ainda apreciar poesia, nada mais reles, não?, nada mais solipsista, certo?
Perdão por me alienar do sublime que hoje anima todas as tribos, nossos irmãos e irmãs bem-aventurados.
Nunca curti dancinhas do TikTok, sejam postadas em Seul, Pindamonhangaba, Austin ou Guadalajara, assumo. Aliás, nunca abri o TikTok.
Nunca vi o BBB, juro, tristemente, por Santa Clara.
Não conheço cem por cento, cem por cento, repito, dos magotes de novas personalidades afluentes que cantam, dançam, representam, influenciam, celebrizam-se por aí, padre, e dão que falar nas TVs, folhas cibernéticas, e nas redes sociais, por certo.
Às vezes, tentando compreender o noticiário — aqueles títulos em letrinhas que correm abaixo da tela, sabe, que mal enxergo — me pergunto se ainda estou por aqui ou já transpus outra dimensão, se vagueio nalgum purgatório.
Não sei picas de que falam.
*
O poeta, segredo não era, é o Pessoa.
Ando a ler, segredado, encantado pelos cantos, seu “Abdicação”, conhece?
Não? Pois recitá-lo-ei.
“Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços/ E chama-me teu filho./ Eu sou um rei/ Que voluntariamente abandonei/ O meu trono de sonhos e cansaços.”
É belo pacas o soneto, que diz:
“Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.Minha cota de malha, tão inútil
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
*
Então, padre, qual a penitência? Precisa de tempo para calcular? Não tenha pressa.
Me mande mais tarde por e-mail ou Whatsapp, eu lhe peço, minha dolorosa, isto é, a conta salgada deste pecador. Prometo me aplicar na penitência até a última ave-maria.
Por ora, para obter um desconto na remissão de meus erros todos, quem sabe, assistirei às transmissões do Forró de Belo Horizonte.
Anarriê, alavantu e balancê!
“Amar a arte sempre envolve alcançar a nós mesmos.”
Peter Schjeldahl (1942-2022)
Divulguei o “Noturno”, décimo capítulo do meu Folhetim na única rede social que eu podia dizer que ainda frequentava, o LinkedIn, tirante, claro, esta juvenilíssima Substack.
Botei lá, no In assim:
“Sim, sei que a plataforma, tal vitrine, não é a mais apropriada para se estampar ficções, mas um escritor que não é do contra, não é nada, não é nada, pode até se tornar um best-seller.”
O “Réquiem do Boi” chega aos últimos capítulos.
Neste domingo, 28, sai “O Disco da Samambaia”, e ainda virão “Réquiem do Boi” — o conto do título — e “Poslúdio”.
*
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!