Pensava até numa exposição, veja você, mostrar em galeria umas fotos, registros do celular modesto de um pobre amador.
Porque um sentido, que depois eu tentaria compreender, se cristalizou naquela caminhada com a irmã, numa manhã de sábado, até Yanipab.
Deve ocorrer na vida de toda gente vez ou outra. O espanto com uma luz inédita. ‘Mas que luz é essa?’; ‘nunca vi luz assim!’, nos diz uma sensação.
Não é só nosso olhar ou nossos poros. É o corpo inteiro associado ao grão, a certo grão de luz, ao dia, um foco intangível no que em nós há de mais profundamente humano. Estava fresco, era abril.
Em meia hora avistávamos Yanipab na colina, como um guardião sobre a velha porteira que divisa aquelas terras.
Era como voltar pra casa depois de cruzar oceanos à noite. Era como ver Yanipab pela primeira vez, na contracorrente do tempo.
Chegamos ao pé dela, onde antes estiveram avós, tios, primos, irmãos, mamãe. Mamãe me falara dela antes de eu a conhecer, tendo-a no coração da menina.
Agora eu e a irmã nos re-conhecíamos ali, entre vivos e mortos, graças àquela luz outonal, gratos pela dádiva, inesperados mensageiros.
Alumbrado, alucinado, saquei o telefone para documentar o que acontecia, como não costumo fazer quando me encanto.
Por aqui devo pontuar que a envelhecer largo mão da vergonha. Escrevo sobre emoções que somos treinados para encobrir. Assim vou me descascando sem querer ao assumir outro papel no mesmo palco.
Não sei por que a isso corresponde um apreço ainda maior, um amor ainda maior às árvores e ainda certo reaprendizado.
Aos poucos mapeio cada espécie que frequento no Parque Municipal, cá no Belo, onde passeio duas ou três vezes por semana — cortejo castanheira, fícus, jequitibá rosa, jacarandá caviúna, pau-brasil, mogno, sicômoro, todos familiares da raiz ao dossel.
Nos dias seguintes ao reencontro com Yanipab me achei um tanto revigorado, passei a acalentar uma ideia, logo um projeto.
Era como se então de repente eu chegasse ao fundo do fim, como canta o Gonzaguinha em “De Volta ao Começo” (1980).
Me vieram versos, frases, simples legendas paras as fotos de Yanipab, como “Que coreógrafo florestou pas de deux de luz na tua folhagem”?
Ou, antes: “Tal e qual me precedeste (a mim, minha mãe, a mãe de minha mãe), és a glória dos que vão nascer”.
A malfadada exposição, que deixou pegadas oníricas, ia ter curadoria do autor. Chamei de autocuradoria, sem meios ou coragem de propor a tarefa a um profissional.
Soletrava a palavra para extrair seu sumo: auto-cura-dor-ia.
Daí a apresentação de Yanipab que se segue e exponho aqui, somente para os seus olhos, nesta nossa galeria Escrevidas, cara leitora, caro leitor.
Yanipab. Uma auto-cura-dor-ia
Um jenipapo é um jenipapo é um jenipapo. Não a tela surreal de René Magritte (1898–1967), o tal cachimbo que não é cachimbo.
Nome científico: Genipa americana. Na língua tupi, Yanipab e Yandipab; significa “fruto da extremidade que dá suco”, conforme um artigo da Embrapa.
O jenipapeiro em pauta, tal indivíduo, é a primeira figura familiar a receber quem se destina à fazenda Cachoeira, zona rural de Bom Jesus do Amparo, picada bem batida do Caminho dos Diamantes.
É tão próximo quanto a parentela de sete gerações cujos umbigos deixamos no casarão erguido sobre a pedra à beira-rio.
Desde ali brotamos, frutificamos, tentamos semear.
E a árvore lá, altiva, exibida.
Yanipab acumula jubileus, enobrece, e assim impera. Encarna o mundo.
Yanipab trata de se renovar à margem (passagem) da estrada, à beira de nossas vidas breves.
Por Yanipab cruzamos muito, ora de carro, ora a cavalo, ora a caminhar no afã de rever um padrão natural, um marco do descobrimento do tempo e de nós mesmos.
Yanipab se impõe no advento envelhecido da tecnologia — e da tirania algorítmica que redefine o estar, senão o ser no tempo.
Sobranceira — alheia ao burburinho ordinário das redes, Yanipab deixa-se fotografar por qualquer aparelho. Chega a posar. Parece jogar verde para nos colher maduros.
Mas devemos, como na canção do Chico (ver playlist desta edição), desconfiar do seu silêncio.
Árvore e pedra — como a Pedra do Remanso, outro porto afetivo da fazenda, e uma outra história — têm seu imo, sua essência, é certo, que uma self não capta.
Selfies podem entorpecer. Recendemos a pó de pixel como uns drug addicts.
Daí o risco da invulnerabilidade às partículas de poesia que — do nada, digamos, de súbitas efemérides — nos atravessam como neutrinos.
Daí o risco de não enxergarmos a substância presentificada da árvore ao passo de nossa reabsorção no tempo.
Tentamos olhar para fora, além de nós, através do que nos constitui em Yanipab — quando algo ainda está de pé, — olhar para o peso (pesar) de cada coisa, (a)pesar do mundo, como na canção do Zé Miguel e Paulo Neves do balé “Oncotô”.
Apesar do pesar do mundo. E como sopesar o mundo?
Sem estar alheio, ninguém é perfeito, sei que não tenho nada a dizer, a somar, uma contribuição relevante a oferecer ao debate babélico. Nem sei desarmar bombas de bílis nem mísseis.
Se ainda me indigno? Quase a diário. E a indignação me desce como um pigarro.
O poema “Aos Pósteros” (An die Nachgeborenen), de Bertold Brecht (1898-1956), diz: “Verdade, vivo em tempos sombrios! (...) Que tempos são esses, em que/ uma conversa/ sobre árvores é quase um crime/ Pois implica silenciar sobre tanta atrocidade! (...)" — tradução de André Vallias.
Silencio. Mas desejo, como na quase prece de Arnaldo Antunes, na canção que dá título a seu álbum de 2020, que o real resista — e que a beleza resista, justaponho. Que a beleza é real.
E hoje estou radicado em Yanipab.
Licor de jenipapo: tanino e mel
Yanipab me lembrou uma das mais comoventes canções de Caetano Veloso.
Mais uma vez o artista recupera a memória familiar de sua Santo Amaro e mais uma vez honra — como só um poeta pode honrar — pai e mãe, além da irmã Mabel, nesse caso.
Na última faixa de “Estrangeiro” (1989) ele entoa "...Onde e quando é jenipapo absoluto/ Meu pai, seu tanino, seu mel/ Prensa, esperança, sofrer prazeria/ Promessa, poesia, Mabel... " ("Jenipapo Absoluto") .
Caetano conta no encarte “Sobre as Letras”, do livro “Letra Só”, que o pai o chamava para ajudar a amassar o jenipapo numa prensa de madeira e fazer o licor caseiro da fruta.
“Eu adorava o licor, adoro ainda. Prensar o jenipapo com meu pai me deixava todo orgulhoso”, ele diz a Eucanaã Ferraz.
A canção, de quebra, nos introduz, ao menos a mim introduziu, e sou muito grato por isso, a dois rubis da música brasileira: o samba “Infidelidade” (1947), de Ataulfo Alves com Américo Seixas, citado no verso “...aquele que considera...”, e “Mané Fogueteiro” (1934), samba-canção de João de Barro (Braguinha), em “...a Rosa também...”.
O melhor o tempo já não esconde na penúltima estrofe, assim:
“Tudo são trechos que escuto, vêm dela
Pois minha mãe é minha voz
Como será que isso era, este som
Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”
Não é uma beleza pura?
Escrevidas nº 2, uma playlist
A lista das canções que mencionei inclui o poema de Brecht, dito em alemão pela atriz Therese Giehse (1898-1975). Caetano, na entrevista citada a E.F., conta que em Santo Amaro ouvia “Mané Fogueteiro” na voz de Augusto Calheiros (1891-1956). Calheiros também é o cantor do sucesso “Ave Maria” (1939), de Jonas Neves e Erothides de Campos, valsa-serenata que Caetano iria interpretar, mais uma vez evocando Santo Amaro, no proustiano “Omaggio a Federico e Giulietta”, gravado ao vivo no Teatro Nuovo, Dogana, República de San Marino, na Itália, era outubro de 1997, e lançado em CD dois anos depois. A versão de Calheiros de “Mané Fogueteiro” está disponível no streaming. Preferi listar a de João Macacão, que me encanta. É doce e marcadamente chorada, atualíssima, com o clarinete soberano de Nailor Proveta e o insofismável violão de Luizinho 7 Cordas no acompanhamento.
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