O fantasma do livros
Eles nos deixaram um apagão que a eletricidade caótica das redes sociais não pode iluminar
Caro assinante
Agradeço muitíssimo a você por assinar Escrevidas.
Às leitoras e aos leitores pagos e membros fundadores: grazie mille. Em breve, espero, vocês começarão a receber alguns textos exclusivos.
Conto com o empenho e a gentileza de quem gosta desta esquina para me ajudar na divulgação.
Sou uma contradição errante irremediável. Não tenho redes sociais além daqui e de um perfil no LinkedIn. Rogo que compartilhem com amigos que também possam se interessar por estes escritos.
Se tivesse nas redes, seria tão impopular quanto um poema de Raimundo Correia.
Aliás, eu seria um influenciador candidato à assistência social. Nem a mim influencio, e sei que tenho de dormir com essa.
(Outra coisa: a newsletter enviada para seu e-mail pode ser direcionada para a caixa de Spam ou “Promoções”. Se isso ocorrer, marque a mensagem como “não é spam” ou mova o endereço de “Promoções” para “Principal”. )
Muito obrigado!
Distanciados, vivemos sob a sombra dos livros, assombrados por eles.
A custo me livrei de muitos. E as estantes esvaziadas ainda me assombram.
Livros incorporam vidas passadas, outros mundos, nos descolam do presente, ou seja, de nós próprios; abrem um fosso tão profundo que à beira dele dá vertigem.
Não sei o quanto, muito menos como, mas desde a espécie de limbo que habitam, os livros nos cobram sua permanência.
Sim, permanecem, apesar de cancelados pelo “espírito da época”, que os alemães chamam Zeitgeist, e bloqueados pela economia digital e a revolução tecnológica.
Permanecem, sim, eternos, como fantasmas.
Na depuração da biblioteca de casa, reencontro livros que nunca li, dos anos de reportagem cultural, quando me chegavam às pilhas.
Pois mantiveram seu silêncio abnegado, adormecidos, em certos casos por mais de trinta anos, testemunhas resignadas da transformação do tempo.
Pego ao acaso uma dessas almas penadas que me acenaram, “O Acorde Tristão”, de Hans-Ulrich Treichel (1952-), lançado no Brasil em 2003. É fininho mas preenche meu sábado e domingo.
É uma sátira deliciosa, divertidíssima, da música erudita contemporânea e do esnobismo e egolatria de certo meio artístico.
Por um fim de semana, o patético estudante de pós-graduação em germanística Georg Zimmer e o celebrado compositor Bergmann, autoconsiderado gênio, os dois personagens centrais do livro, viveram suas vidas plenamente, seus dias e noites, viajaram e trabalharam por meio de um inédito, inesperado e agradecido leitor de Treichel.
Convivo bem com meus próprios fantasmas, a disputar vazios com fantasmas dos livros. Mas tenho a consciência do peso de sua inutilidade.
Livros já foram uma razão de viver, um elo comunitário, um catalisador de sociabilidade, um presente muito estimado, tema de suplementos nos jornais, emprego para jornalistas, críticos e diagramadores.
Livros já foram uma Cultura capaz de cristalizar passado, presente e futuro.
Hoje não passam de promessas adiadas, tesouros sem valor, amigos relegados.
E se não são queimados em praça pública, ainda são proibidos, como ocorre em parte dos Estados Unidos, e alguns autores podem ser cancelados e banidos por não jogar no Dogmático, time de coração dos radicais.
Livros se tornam um estorvo.
São uma ameaça às árvores, pasto de fungos e cupins, trastaria a ocupar espaços de nossos gatos e plantas, imensa diáspora a vagar por sebos e heroicas livrarias, condenados à gaiola fantasmagórica dos e-books.
Tornaram-se raras, para dizer pouco, nossas conversas literárias, nosso fascínio e entendimento comum em torno de uma obra clássica, de autores, de poemas, de poetas, em torno do encantamento pela criação e imitação da vida.
Perdemos muito terreno comum para o diálogo e a compreensão da vida.
Os livros nos deixaram um vazio expansivo e congelante, um apagão que a eletricidade caótica das redes sociais não pode iluminar.
Não há mais tempo para os livros.
Por certo, livros são exigentes.
O leitor perde tempo, retira-se, ensimesmado, do convívio social e familiar, afasta-se do burburinho quente das redes sociais, perde as últimas notícias, perde os preciosos eflúvios da políticas, perde os escândalos dos príncipes da Inglaterra e as novas fórmulas do bem-viver.
Quase toda gente precisa fazer planos no tempo livre, quando ainda é mais necessário usar nossos aplicativos para contornar o tédio — e tentar pegar o amanhã pelo rabo.
Ai dos livros. Melhor não ler. Ai de nós. Melhor não ler.
Mais singelamente, me toca no streaming da cuca o canto de Lucas Santtana na já velha (2000) gravação da canção de Herbert Vianna: “Os livros na estante já não têm mais/ tanta importância/ do muito que li, do pouco que eu sei/ nada me resta...” (se quiser, você pode ouvir a música na playlist da edição).
Quando ainda existem, os livros, com seu valor dúbio, nos assombram.
Quando não existem mais, são peças decorativas, papel e tinta impressos, mera mercadoria em feiras multitudinárias, calços de móveis, quando não insumo da indústria da reciclagem.
Sou caso perdido, vou com eles até o fim, até penetrar as “torres coroadas pelas nuvens”.
Ainda leio muito, em geral madrugada adentro.
A canção “Livros” (1997), de Caetano Veloso, parece ter sido escrita pra mim, para nós, gentil leitora, gentil leitor.
Caetano começa por brincar com um verso de “Chão de Estrelas”, clássico dos clássicos de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa de 1937 (“A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/ E tu pisavas nos astros distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar/E o violão”.
Caetano:
“Tropeçavas nos astros desastrada/ Quase não tínhamos livros em casa/ E a cidade não tinha livraria/ Mas os livros que em nossa vida entraram/ São como a radiação de um corpo negro/ Apontando pra a expansão do Universo/ Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ E, sem dúvida, sobretudo o verso/É o que pode lançar mundos no mundo.”
E ainda estes versos magníficos desta canção-síntese: “(...) Os livros são objetos transcendentes/ Mas podemos amá-los do amor táctil/ Que votamos aos maços de cigarro.”
Quem fumou — quando todo mundo fumava e o cigarro era uma espécie de celular que fazia fumaça — sabe o que canta o poeta de Santo Amaro.
Livros e maços de cigarros.
Um clássico contemporâneo
Não posso deixar de recomendar aqui minha melhor leitura do ano passado. Ainda estamos em janeiro e não há tanta pressa assim com retrospectivas, espero.
Livros não envelhecem como o ano passado, e há muito que ler.
Pois rompi, com muito prazer e proveito, quase 700 páginas de “Os Europeus: O Século XIX e o Surgimento de uma Cultura Cosmopolita”, do historiador inglês Orlando Figes (1959-), com tradução de Clovis Marques.
Chegou ao Brasil em 2002, pela Record, sem alarde — vai longe de ser um desses livros ditados pela moda ou pelos novos evangelistas que atraem a atenção da mídia e do mercado editorial.
Figes torna deliciosa a história da difusão cultural na Europa, e do próprio surgimento da sensação de pertencimento ao continente, da adesão a um “sentir-se europeu”.
Essa fundação de uma “cultura cosmopolita” é relacionada ao advento das linhas férreas e de sua expansão, a partir de 1830, com a enorme vantagem imposta às carruagens e o encurtamento de tempo e distâncias.
Percorremos com o autor o nascimento de uma era que ainda alicerça a tradição ocidental.
É a era gloriosa da ópera e da pintura moderna, da música de concerto e de entretenimento familiar e social, da revolução industrial e da renovação urbana de cidades como Londres, Berlim ou Viena; é quando surgem os museus como os conhecemos.
O livro é especialmente valioso para quem se interessa por esse universo e pela história europeia — também para quem admira o projeto, ainda inacabado, da União dos 27 Estados-membros, desde janeiro de 2020, detonada a bomba do Brexit.
O surgimento de um crescente mercado cultural, com a popularização da literatura, da ópera, da diversão musical e do comércio de partituras e pianos, das feiras de diversão multitudinárias e logo do turismo continental e sua “indústria”, no século 19, é narrado por Figes com fluência, sabor e domínio da técnica literária.
Observamos o desenrolar do novelo de fatos, documentos e estatísticas, ao passo que acompanhamos, como quem segue uma ótima novela, um triângulo amoroso tão pacífico quanto apaixonado, repleto de viagens, casas de campo, palácios, salões e serões musicais, palcos, plateias e cartas trocadas diariamente.
No vértice do triângulo reina a celebrada meio-soprano e compositora espanhola Pauline Viardot-Garcia (1821-1910), uma mulher e tanto; na base, o influente escritor russo Ivan Turgueniev (1818-1883) e o marido de Pauline, o escritor e crítico de arte, também ativista republicano francês Louis Viardot (1800-1883).
É difícil apontar uma estrela das artes, da música e literatura naqueles anos que não tenha frequentado, correspondido ou cruzado com os três nas grandes capitais europeis, incluindo Moscou, ou na alemã Baden Baden, onde os Viardot tiveram um casarão.
De tal constelação brilham com protagonismo o casal Schumann, Chopin, Brahms, Liszt, Offenbach, Wagner, Meyerbeer, Berlioz, Delacroix, Victor Hugo, Zola, Dostoievski e George Sand.
Além de Mozart “in memorian”.
Sabemos da devoção de Pauline ao compositor austríaco, representada pelo manuscrito do “Don Giovanni”.
Ela compra essa obra original em Londres, ao vender muitos dos seus mimos de valor, e logo vai exibir a relíquia numa espécie de santuário que prepara na mansão parisiense.
É longo rol de peregrinos, entre eles vários esteios do clássico musical, que vão adorar a peça; entre a turma, mais tarde, haverá um jovem Tchaikovsky, às lágrimas diante da partitura e das marcações do grande mestre.
Essa história também é muito bem contada em um dos episódios da série documental “A História Secreta dos Manuscritos”, na grade de programação do canal Film&Arts.
*
Sobre o que é ser europeu hoje e os conflitos internos que ameaçam a União continental, aliás, saiu em maio do ano passado o ensaio “Homelands: A Personal History of Europe”, de outro historiador britânico, Timothy Garton Ash (1955-).
Ainda sem tradução no Brasil, o livro pode ser encontrado na versão espanhola “Europa: una Historia Personal”.
Garton Ash volta a alguns dos cenários da Segunda Guerra, como os campos de concentração, e repassa a própria biografia de europeu britânico para esconjurar ameaças e defender a conquista civilizatória e democrática que a União Europeia representa.
Estamos falando do maior intervalo de paz no continente em quase dois milênios manchados de banhos de sangue, ruínas, obscurantismo, colonialismo, nacionalismos e genocídios — antes da invasão russa à Ucrânia.
Releituras: beleza e consolação
O jeito de apaziguar nossos fantasmas nas estantes, de humanamente revivê-los, é ler e reler. Ou do que mais se trata?
Tenho relido muito em anos recentes. Ponho aqui três de minhas revisitas.
Não passo sem Machado de Assis (1839-1908), para começar.
Sua obra é vitalícia a cada leitor renovado ou que se renova em suas páginas.
Entra ano sai ano, o Conselheiro Aires me convida a escrutinar seu memorial e me banhar de sua sabedoria melancólica, em busca de sossego, beleza e consolação.
Ao voltar ao Casmurro, em novembro, compreendi que a força do romance não se resume à miséria de Bentinho e à desgraça de Capitu, sequer à ironia e humor sem rivais de mestre Assis.
Bentinho vai se tornando reiteradamente humano a cada releitura, e sua humanidade tocará uma corda distinta por vez, em cada leitor.
A tortura da culpa e do isolamento é o legado de sua vida, seu “nunca mais”, como no corvo de Poe.
Esse abandono é representado de forma magistral quando percorre a casa velha familiar, após a morte da mãe.
Em uma passagem entre as mais altas da literatura brasileira, lemos, então:
“(...) toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.”
Greene e Scobie
Gosto de pensar que ainda restam a Graham Greene (1904-1991) dois leitores vivos.
Um é um simpático velhinho anônimo, bem agasalhado no interior da Inglaterra; o outro, idoso mais recente, vive no Belo, nas Minas dos Matos Gerais, a rogar que o calor nos dê uma trégua.
Fazer o quê? Paixão antiga não falha.
Todo ano retomo ao menos um de meus títulos favoritos de Greene, num revezamento entre “O Americano Tranquilo”, “O Poder e a Glória”, “Nosso Homem em Havana”, “O Fator Humano” ou o terrivelmente engraçado “Monseñor Quijote” (na versão espanhola, o livro não tem tradução no Brasil, até onde sei), que me faz rir quase tanto quanto “O Alienista” de Machado.
E ainda mais retorno a “O Cerne da Questão”, drama de um inglês católico, comissário de polícia de sua majestade enviado com a mulher para um posto numa colônia africana, durante a Segunda Guerra, depois de perderem uma filha pequena.
Scobie, o embaraçado herói dessa obra-prima terrivelmente noturna é uma espécie de Quixote atormentado pela culpa, a perda da fé, sem qualquer esperança de corrigir o mundo.
Ele não suporta saber “que nenhum ser humano pode realmente entender outro ser humano, que ninguém pode providenciar a felicidade do outro”.
Berghof
Thomas Mann (1875-1955) achava um desaforo da nossa parte não reler “A Montanha Mágica” ao menos três vezes na vida. Estava coberto de razão.
Seu livrão procura emular a própria natureza do tempo, um absurdo, o que não damos conta na primeira leitura, e nos pede um belo esforço, hoje um trabalho de Hércules.
Quem vai encarar um romance de 800 páginas? Na primeira conferida nas time lines, bem no meio de um parágrafo cerrado, babau, adeus Herr Mann.
Berghof, em Davos, na Suíça, é o teatro hospitalar — sanatório de tuberculosos — de uma peça de muitos atos encenada devagar, por anos a fio.
Seu ritmo é o da vida sem que se tenha muito que fazer, além de repousar e comer, comer e repousar, ou dos excruciantes cronogramas da doença e da morte.
Não há diálogo ou descrição do clima congelante e da branca paisagem alpina que devesse ser podado do texto. O livro tem um tamanho justo.
Mas — o que ajuda a atravessá-lo — há as muitas camadas de humor nas tribulações do fascinante Hans Castorp, nosso herói, como quando o vemos indignar-se com seu coração:
"É como se corpo seguisse o seu próprio caminho e se tivesse desligado da alma. (...) Eu queria somente dizer que é uma coisa sinistra e penosa ver o corpo levar uma existência própria, independente da alma, e dar-se ares de importância, como no caso dessas palpitações sem motivo." (Tradução de Robert Caro)
Quem discorda do jovem engenheiro?
É preciso entender Castorp, deixar que ele nos guie em sua inocência de aprendiz, e nos deter na sua atração de órfão pelo chamado descanso eterno, no seu “gosto pelas coisas tristes e edificantes”:
“Por exemplo, um pano preto, sabe?, com uma cruz de prata em cima ou com as letras R.I.P… ‘Requiescat in pace’… uma bela frase, a mais bela de todas, na verdade, e que me agrada bem mais que ‘Muitos anos de vida’, com sua alegria ruidosa."
É preciso confiar na disciplina intelectual do pupilo aplicado em formação para melhor vê-lo se perder, ora tonto, ora encantado, ora enfurecido em tentativas de entender seus três grandes tutores.
A alma de Castorp filtram o feroz duelo ideológico entre o jesuíta totalitário Naphta, o humanista Settembrini, e já mais para o fim, o memorável hedonista Peeperkorn, o homenzarrão que fala pouco e chega a Berghof com a linda russa Clawdia Chauchat, idolatrada de Castorp, a tiracolo.
Tudo, tanto, corre lentamente no livrão de Mann, como um rio subterrâneo que em vez do mar alcançasse as profundezas da montanha mágica.
Para então emergir do ventre das cadeias alpinas como lava derramada sobre os campos encharcados da Grande Guerra, a sepultar arte, flores, crenças, filosofias e corpos adolescentes.
A melhor série
“Endeavour – o Jovem Morse” é a melhor série que pude ver nos últimos tempos.
Os mais de 30 e longos episódios, de quase hora e meia, exibidos no Brasil no canal Film&Arts, ainda estão disponíveis no Now, sabe-se lá até quando.
“Endeavour” me livrou de uma grave congestão causada pela banalidade e pelo desprezo à nossa capacidade de assimilar e reelaborar o que vemos.
Exibido originalmente de 2012 a 2023, em nove temporadas, o “Jovem Morse”, com o perdão da palavra, é a chamada “precuela” (do inglês “prequel”) de “Inspector Morse” (1987-2000), a série inaugural, baseada nos livros do inglês Colin Dexter (1930-2017), que não me lembro de ter passado no Brasil.
A enfiada de crimes que vemos na bela Oxford, Inglaterra, e a consequente investigação policial, é apenas um dos focos do seriado, para mim nem o mais interessante.
Em Morse, a violência nunca é pornográfica. E sentimos que a integridade artística é um compromisso de todos os creditados.
As histórias de “Endeavour” começam em meados dos anos 1960 e vão até 1972.
Fotografia e direção de arte nos levam a este corte temporal — um mergulho a quase 60 anos atrás — tal a fidelidade da reconstituição histórica.
A suspensão temporária da incredulidade, que nos pede a ficção, se torna agradável e tranquila quando notamos os cuidados dos encenadores com a pesquisa.
Entramos no tempo retratado graças à fotografia, à luz, ao desenho cenográfico, à decoração de interiores e à moda.
Graças também à atmosfera cultural e aos conflitos de geração que aparecem no fundo histórico desses anos turbulentos, nos dramas de cada personagem.
Morse nos proporciona uma reimersão nos reflexos da Guerra Fria, nos ecos da guerra do Vietnã e dos atentados do IRA, no voo inaugural da Apolo à Lua, na revolução da contracultura, com minissaia, amor livre e orgulho gay.
Mas o melhor mesmo, o fino do fino é a inteligência dos diálogos, a roteirização, a música de Barrington Pheloung y Matthew Slater e, por certo, o método da direção e a seriedade na entregada do elenco.
O trio de protagonistas honra e eleva o entretenimento televisivo:
Shaun Evans representa Morse como o personagem de uma vida;
Seu chefe e mentor, o veterano detetive Fred Thursday (Roger Allam) faz seu contraponto à perfeição;
O patologista forense, dr. Max DeBryn (James Bradshaw), torna eternas suas breves aparições, com rigor profissional e desconcertante senso de humor.
E ainda melhor, de fato, creio, é a valorização do silêncio, o timing respeitoso às sensações e à absorção do espectador, cuja inteligência jamais é ofendida.
O último capítulo dignifica a produção e o trabalho de toda a equipe. Sua encenação é uma apoteose de bom gosto, uma homenagem à teledramaturgia.
Tudo, ainda que brevemente, nos faz confundir vida e ficção, e nos traz alguma esperança de que ainda não estamos condenados para sempre ao chorume.
Pelas tantas — devo riscar isso aqui como um “X” em um mapa do tesouro — ouvimos a voz teatral de DeBryn dizer esta passagem de “A Tempestade”, de William Shakespeare, da célebre fala de Próspero:
(...)
“Nossa festa acabou. E os atores que vimos,
Conforme eu disse, eram espíritos, e todos
Se dissiparam pelo ar, no ar rarefeito.
E, como essa visão de arquitetura diáfana,
As altas torres coroadas pelas nuvens,
Os palácios gloriosos, os templos solenes,
O próprio globo imenso, e todos que o herdarem,
Sim, tudo, tudo um dia vai se dissolver
Sem deixar para trás nem um rastro de névoa.
Nós somos da matéria de que é feito o sonho,
E nossa diminuta vida é circundada
Por um adormecer.”
“A Tempestade”, William Shakespeare. Tradução José Francisco Botelho.
Salve e saravá!
Escrevidas nº 3, a playlist