O “inferno pamonha” e o cangaço online
Com chamas de LED, sem fogo nem calor, o pandemônio cultural impõe a sustentabilidade como castigo eterno
(A névoa engole o Serrão. Choveu um pouco e esfriou no início de ano; um ou dois pisos abaixo, um aplicado aluno de música tenta solfejar; ao largo bem-te-vis cantam sem acanho; eu retomo a escrita, minha escrita da vida.
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Viramos o ano por aqui, em Belerozonte (vou adotar essa mistura de BH, minha cidade, com o semideus Belerofonte (Βελλεροφόντης), filho de Poseidon. Mais um “famoso” da mitologia grega. Célebre por cavalgar o cavalo alado Pégaso e matar Quimera.
O Natal cumprimos em Sampa, com nosso netinho, seus pais e familiares de lá, nos sentindo os próprios Avós Magos.
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Conto com suas visitas aqui, este ano também. Bem-vindos a bordo, querida leitora, querido leitor. Como se diz por aí, mi casa es su casa. Obrigado pela companhia.
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Ah, o autor foi presenteado no Natal com um livro de papel, quase seiscentas páginas, ótimo de pegar, precioso, que enseja o núcleo desta primeira coluna do ano da graça (espera-se) de dois mil e vinte cinco.)
“O inferno imbecil” (“moronic inferno” em inglês) se converteu num pandemônio (de Pandæmonium, palácio de Satã e capital de todos os demônios.
Estamos aí, uns mais, outros menos. Nossa humanidade condenada a respirar os miasmas do “moronic inferno”, e a queimar em vivas brasas de LED, fiel à nova moral sustentável.
É onde padecemos, ainda que em diferentes círculos infernais — hoje vão muito além dos nove mapeados em “A Divina Comédia”, imagino. Afinal, desde os tempos de Dante, com tantos e tantos progressos, nossos pecados se multiplicaram incalculavelmente, à medida que nos tornamos uns Prometeus, a roubar dos deuses sementes de fogo “à roda do Sol”.
O maior e pior desses círculos é justamente o “inferno imbecil”, em minha avaliação.
Muitos dos condenados às chamas de LED, è vero, nem desconfiam da pena a que foram submetidos. Não sentem falta de nada. Marcham firmes na nova ordem como marchariam em qualquer outra; desfrutam de tudo, dançantes, risonhos, no meio da galera, a dar sua contribuição para inflacionar o ciberespaço e o Universo.
Assim, ao menos atuam como podem, atores bons ou ruins, na “Casa” chamada Terra do imenso reality show que o mundo se tornou. Desfrutam melhor de seu tempo e, como cabe a cada um de nós, cumprem seus anos com benefício.
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Mas “Inferno imbecil”? “Moronic inferno”? Que fuck é essa?
Me deixa explicar.
Esse retrato da condição existencial (e cultural, claro) da sociedade, formulado como “the moronic inferno”, foi criado pelo artista inglês Wyndham Lewis (1882-1957), ainda nos anos 1920. Décadas depois, a expressão é tomada de empréstimo pelo romancista americano Saul Bellow (1915-2005). E agora reaparece em “Os Bastidores” (lançado no Brasil ano passado), do escritor britânico Martin Amis (1949-2023), pupilo e compadre de Bellow. O livro de Amis é um delicioso bolo literário com grossas camadas de memórias e ensaio cobertas pelo glacê do romance (e muito sexo) ou, se você preferir, da autoficção. O tal presente de Natal do Antônio. Amis também deu a uma coletânea de ensaios de 1986 o título “The Moronic Inferno”, mas isso é outra história…
De modo geral, “o inferno imbecil” traduz o repúdio às “palavras do rebanho”, à vida desprovida de espírito, à estreiteza da cultura de massas, ao culto à celebridade, ao vale-tudo em todas as mídias. Se enraíza na crítica ao declínio intelectual da sociedade que acompanha a história do modernismo desde os primórdios, lá atrás, desde… ou um pouco antes, do nascimento da indústria cultural, feita por pensadores exigentes e rabugentos.
Pela metade dos anos 1980, o grande entusiasta de Bellow que era Paulo Francis (Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, 1930-1997) se referiu a “the moronic inferno” (não me lembro se com o devido crédito) como “o inferno pamonha”, pamonha, no caso, personificação de uma era culturalmente boba, feita e chata; o “inferno pamonha” era o “inferno bocó”, ou bocoió, como dizíamos no interior.
Embora sonoro, “inferno pamonha” talvez, e só talvez, seja um tiquinho forçado.
José Rubens Siqueira, tradutor de “Os Bastidores” (que nem sempre brilha, devo dizer) assenta satisfatoriamente “o inferno imbecil”.
Mas “inferno estúpido”, “inferno tolo” , “inferno idiota” chegariam perto de “moronic inferno”.
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Perguntado num programa da BBC (chamado “O Mal-Estar da Modernidade”), no início dos anos 1980, sobre o que queria dizer ao usar a expressão de Lewis que tanto apreciava, Bellow foi mais abrangente, elegante e, claro, mais inteligente — como diz Amis, o homem sempre estaria acima do “inferno imbecil”.
Cito “Os Bastidores” (pág. 33), grifo do Escrevidas:
“Bom, o termo significa um estado caótico ao qual ninguém tem organização interna suficiente para resistir. Um estado em que a pessoa é dominada por todo tipo de poderes políticos, tecnológicos, militares, econômicos e assim por diante; que carrega tudo à sua frente com uma espécie de desordem pagã na qual se espera que a gente sobreviva com todas as nossas qualidades humanas”.
Um dos significado de pandemônio, aliás, segundo o Houaiss, é “uma mistura caótica de pessoas ou coisas; confusão”.
Esperávamos que escritores, intelectuais e cientistas com um pé nas humanidades pudessem ainda resistir ao “inferno imbecil”, mas essa tradição dançou.
Alguém diria que estamos pacificados. Que nos curamos do “mal-estar da civilização”, teorizado por Freud, e que concebia a arte como uma espécie de válvula de escape para as exigências da vida em sociedade.
O desejo se espraiou, leve e solto. Nada mais a “sublimar”. Os instintos se soltam nas redes e a pornografia sossega toda libido reprimida.
Os grandes críticos literários e ensaístas se esconderam nas universidades, entre os seus. Não dão mais as caras nos jornais ou botequins, e os próprios jornais seguem mancando, feridos gravemente pela tecnologia.
Renegaram, críticos literários, ensaístas, etc., o papel de “intelectuais públicos”, quando perdemos o respeito pela autoridade do crítico da cultura, por mais alto ele seja.
Uma das razões para isso, que devemos compreender, é que nem todo mundo tem temperamento para fazer bundalelê do TikTok, ou arriscar a pele com as legiões patrulheiras.
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No “inferno imbecil’ estamos condenados a buscar receitas de felicidade no mercado da propaganda online, e as encontramos aos montes; também a brincar de “boca de forno” e atender a tudo que os mestres da tecnologia mandar, e a aderir de corpo e alma ao “populismo cultural”.
Entendo que no “populismo cultural” realmente não importa a qualidade de uma manifestação artística, música, literatura, o que for, mas sim a qualidade moral do artista, ou pretendente a, e sua, digamos, produção, isto é, importa sua cotação na bolsa identitária e sua fé na “Justiça Social”, como explicaram muito bem Helen Pluckrose e James Lindsay em “Teorias Cínicas”. Quando essa manifestação é rebaixada, como em certo gêneros de música popular em que pouco importa o sentido ou a beleza do se canta ou do barulho que ouvimos, aí tudo bem. Se está bom para o povão está ótimo para o demagogo em busca de mais cliques e audiência, é parte da nova economia.
Mas já não se trata mais de arte. O negócio também está envolvido nas premiações e editais públicos de cultura. Tudo é sociopolítica e só, tudo muito justo, justiça social, enfim, mas não é arte. A arte não pode com bridões e cercamentos. Até pode, segundo a história, mas cadê os heróis da resistência? Sem audiência ou inéditos. Sem falar que a arte não existe sem que se busque por ela, mas aí voltamos a Freud…
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Se você me pedir uma imagem visceral do “inferno bocoió”, tudo terra, carne, sangue e osso, e merda também, ofereço um reality show apresentado por um homem de coloração mexerica estragada tirante a amarelo-iodo, um supremacista branco muito macho chamado Donald Trump. “O Aprendiz” fez um baita sucesso (14 temporadas, apresentadas de 2004 a 2025) e ganhou o mundo.
Gostaram tanto do “reality” no país mais poderoso da Terra, a incomparável Meca do Capitalismo, que promoveram o farsante duas vezes ao cargo de Mr. President, a segunda agorinha mesmo.
Em “Os Bastidores”, ao identificar o “populismo” como “antielitismo”, Amis cita uma fala de Donald em um comício. A coisa até me remeteu ao “Sermão da Montanha”:
“Amo os menos educados. Somos os realmente inteligentes”.
E já no final do livro, Amis pergunta: “Trump (...) é um bárbaro irrefletido ou um oportunista extraordinariamente desprezível?” Ele mesmo responde: “Com certeza, ele é ambas as coisa”.
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Quem pena no “inferno imbecil” sofre um mal-estar crônico, algo que Antônio designou num poema adolescente (e levaria uns cinquenta anos para entender completamente seu significado) como “aspereza insone”. É um permanente incómodo com o mundo, com intervalos de relaxamento, claro, que é preciso se divertir um pouco, seja como for.
Quase cem anos desde Wyndham Lewis — nesse longo arco da modernidade incluindo o pós e o pós-pós-moderno — sucumbimos ainda mais aos castigos do que Francis imaginativamente traduziu por “inferno pamonha”.
Atomizados, não sabemos mais que fazer para competir no livre mercado da egolatria, o que mais fazer do laissez-faire/laissez-passer da tolice. Isso inclui muito trabalho digital e estética corporal... É uma canseira só.
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Quem hoje pode se ver acima do inferno imbecil? Toda oposição será castigada, ou despontará para o anonimato.
“A vida se tornou tão vazia que não se consegue mais para de rir”, diz Herzog, o anti-herói do romance homônimo de Bellow, publicado em 1964. Essa conversa não vem de hoje, então.
No “inferno imbecil” cada uma de nossas partículas elementares é atravessada pelo vazio, vazio filtrado pelo vazio.
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O “inferno bocoió” ganhou batalhas e território antes alheios à sua ação.
A expressão se enriqueceu em nossos dias com o negócio das “guerras culturais” e seus rizomas a penetrar a alma de indivíduos, famílias, sociedades.
Os novos sinais teriam facilmente sido notados por Lewis, Bellow e Amis (que se foi em maio de 2023, aos 73 anos, de câncer esofágico, tal e qual, doze anos antes, aos 62 anos, seu amigo do peito Christopher Hitchens — essa amizade é um dos temas de “Os Bastidores”. Outro mentor de Amis de que o livro trata é o poeta (figuraça) laureado Philip Larkin, 1922-1985).
Pressinto os domínios do “inferno bocoió” em toda cultura humana, na acepção antropológica de cultura que, segundo alguns estudiosos mais abrangentes, se abre à Via-Láctea.
Amis cita o historiador Norman Cohn (1915-2007), conterrâneo seu, em livro que podia chamar em português “Mandado de genocídio” (Warrant for Genocide”).
Na síntese de Amis, Cohn realiza nessa obra “um estudo da mixórdia tsarista Os Protocolos dos Sábios do Sião...”.
Se trocarmos a “mixórdia tsarista” e o radicalismo islâmico que leva ao 11 de Setembro (tema de Amis) pela mixórdia dos extremismos de direita e esquerda de hoje, as alucinações conspiranoicas, a negação da ciência e a expansão do cangaço digital na internet, com tudo que acarretam (dia 20 está aí), temos uma límpida descrição de um fenômeno que está se repetindo em nossa era.
A citação de Cohn:
“Existe um mundo subterrâneo onde fantasias patológicas disfarçadas de ideias são produzidas por vigaristas e fanáticos semieducados (notavelmente do baixo clero) para o benefício dos ignorantes e supersticiosos. Há momentos em que esse submundo emerge das profundezas e de repente fascina, captura e domina multidões de pessoas geralmente sãs e responsáveis, que então se despendem da sanidade e da responsabilidade. E ocasionalmente acontece que esse submundo se torna um poder político e muda o curso da história”.
Bia, Maria Bonita do cangaço cibernético
A peste das ligações indesejadas virou uma epidemia no cangaço cibernético.
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