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Em “O Tonel do Ódio” (Le tonneau de la haine), poema de “As Flores do Mal”, Charles Baudelaire (1821-1867) põe o Ódio na pele do bebum que quanto mais entorna mais sedento está.
Na tradução de Ivan Junqueira,
“O Ódio é um ébrio perdido ao fundo da taverna,
Que sente sua sede emergir do licor
E ali multiplicar-se qual hidra de Lerna.”
(A Hidra é aquele monstro grego que bem podia ter nascido no Vale do Silício. Tem um assustador poder regenerativo: se lhe cortam uma cabeça, outras duas crescem no lugar.)
Mas o porre jamais oferece ao Ódio algum contentamento,
“— Mas quem bebe feliz verá seu vencedor,
E ao Ódio resta apenas a amarga certeza
De saber que jamais dormirá sob a mesa.
E pensar que há quem veja a poesia, não sem razão, temperança e, sobretudo, ciência, como nada de nadas, o nada supremo e maiúsculo: Nada.
No soneto “O Morto Alegre”, Baudelaire está feliz da vida, ainda que da vida ida, ele que escreveu,
“Odeio o testamento e a tumba me nauseia;
Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo,
Prefiro em vida dar aos corvos como ceia
Os trapos que me pendem do esqueleto imundo.”
Assim é que o homem nos dá um alô de 167 anos, desde a publicação de “As Flores”, com uma rotunda e viva imagem do Ódio, hoje tão enérgico entre nós, tão maiúsculo.
Ódio que se espalha como o fog maldito que cobre e sufoca o Belo dia e noite, Ódio ambiental de agora e sempre.
Ódio que nos assedia nos polos de ideologias extremas, com seu ranho verdoengo, ainda que invisível, a escorrer dos narizes de santos do pau oco e profetas do caos a comandar exércitos de idiotas.
*
“Poesia numa hora dessas? Não tem cabimento fazer massagem cardiorrespiratória numa arte morta e enterrada. Poesia é coisa de quem não tem o que fazer”, resumiu Mario Sérgio Conti, colunista do jornal “Folha de S.Paulo”.
Mas MSC nos fez o favor de traduzir satisfatoriamente a “Canção de Boas-Vindas”, poemaço do russo Joseph Brodsky (1940—1996).
Eis três dos dezoito tercetos do poema, no inglês original, muito recomendável, e vertidos (presumivelmente, não há outra atribuição de autoria) pelo jornalista.
“Here’s your paycheck, here’s your rent.
Money is nature’s fifth element.
Welcome to every cent.”“Eis seu salário e a inadimplência.
O dinheiro é a quinta-essência.
Bem-vindo à sua ausência.”—
“Here’s your blade, here’s your wrist.
Welcome to playing your own terrorist;
call it your Middle East.”“Eis você com a lâmina junto à jugular.
Bem-vindo, autoterrorista singular,
A seu Oriente Médio particular.”
—
“And here are your stars which appear still keen
on shining as though you had never been.
They might have a point, old bean.”
“Eis as estrelas que não estão nem aí
Para você ter ou não estado aqui.
Meu velho, é isso aí.”
*
É, meu chapa, melhor mudarmos a prosa.
Lá fora ninguém quer ouvir falar desse negócio de poesia nem nada que abaixe nossa crista na onda palerma que rola por aí.
*
Queria ter botado no Twitter que remudar tem suas vicissitudes.
Mas não tenho Twitter, não tenho rede social além desse tar (ai meu sanguinho caipira) de Substack, onde me escondo. Ainda não dei o pira do LinkedIn, esse inferno dos vadios, por mera vadiagem.
Esse é o xis do problema (cantarolo Noel, viu?) de minha impopularidade. Não sou nenhuma Anitta, nenhum Gustavo Lima, e essa agora, nem ela, grata surpresa, Deolane Bezerra.
Ia, ideei, dar conhecimento à Terra, pelo Twitter do xis, que nossa temporada ao pé (ou à copa) da excelente carolina estendeu-se por mais três dias e três noites.
Escalonou-se o voltar pra casa, volta que na coluna anterior eu dera por consumada.
Na sexta-feira passada, eletricista, azulejista, gesseiro, bombeiro, pintor, o cara do sinteco, o pessoal da marmoraria e outros operários em construção (cantarolo Vinícius) pelejavam, em frenético mutirão, para concluir a reforma e nos franquear a morada de volta.
Neca.
Mas na segunda-feira, setembro entrado (já cantarolo Beto Guedes e Ronaldo Bastos), enfim viemos, nos transpusemos, amém.
Estou de volta ao meu canto, ao clube dos poetas mortos e ao fantasmático mundo de meus livros, o que me apraz como uma alma penada de Baudelaire.
Me importava reencontrar o deus da minha da rua (cantarolo trans a canção de Jorge Faraj — 1901-1963 - e Newton Teixeira - 1916-1990, que podemos ouvir na playlist da edição com o português Zambujo), o magnífico Ipê-amarelo (e maiúsculo) do poema abaixo.
Queria botar no xis do Twitter — de que tanto falam, e com isso tanto me amolam, por vezes enojam — que o Ipê-amarelo da ladeira da Maranhão, nesta quadra do Belo, mais uma vez se escancara.
E ele, Ipê-amarelo, vai, por assim dizer, de mãos dadas com uma carolina, veja no flagrante aí, e veja você como são as coisas que não queríamos nem podíamos ver.
É notícia, boa-nova, mais relevante que o destino de mil redes sociais e toda a tagarelice do mundo, com suas Deolanes estelares e tal.
Mais relevante que o empreendedorismo de um gênio tão amado que se proclama descobridor da Lua e de Marte.
O Ipê-amarelo do poema foi preservado por milagre à frente de antiga residência, vizinha ao finado, também demolido, Bar e Cervejaria Brasil, por muitos anos uma extensão de nossa copa e cozinha.
No terrenão (foram juntos no bota-abaixo uma padaria e uma farmácia) começaram a erguer outras dessas hidras contemporâneas que são nossas horripilantes torres de apartamentos.
Não é Ipê-amarelo (Handroanthus chrysotrichus) qualquer esse daí. É um assanhado que há muito vem me pregando peças.
Sua floração é sempre súbita, quando setembro se avizinha. Como por abracadabra, explode no escondidinho da madruga.
Sua exuberância contra o fundo azul do céu então me põe a babar, quase incrédulo, e diante dele me estaco como um perdigueiro à caça da beleza.
Uma dessas peças do Ipê me levaram aos versos aí.
Peço licença poética aos célebres ossos de Baudelaire e Brodsky, por me meter numa mesma página em que aparecem.
E licença também à leitora e ao leitor ocupados, por insistir na tranqueira da poesia.
Ipê
Saía cedo,
Novo dia em que me vendo
Suposto ser às cegas
No rol da vida vicária.À margem da sempiterna
E daninha florada, meu irmão,
Meu igual, eu remava. Eis que
Olímpica e nua bignoniáceaA ostentar seu ciclo inopinado,
Tal condição, pé, potestade,
Punha-se no passeio como um deus
E na frente do bistrô se arvorava.Levava-se, vi, tragédia
De pendor vangoghiano,
Reflexo da escuma cósmica,
Glosa solar, ditirambo.De ousar ver tal milagre
Duvidei que inda enxergava
Mas bem me refiz, descrente,
À tona, no vau da realidade.
*
O Ipê-amarelo (de um autor sem láurea ou pataca) é um canto ao Nunca Mais — maiúsculo igualmente; é meu jeito estranho de saudar os vermes, o primeiro verme que roerá as frias carnes do meu cadáver (cantarolo Machado).
A florada amarela é um intervalo silencioso em meio ao ruído rotineiro da vida que se vive às cegas, sem ter quê nem pra quê.
É música.
E de nada vale.
A florada, no entanto, é um acontecimento na vida de minhas rotinas tão fatigadas (cantarolo Drummond).
Um Nunca Mais companheiro. Enquanto o Nada é só o Nada.
*
O tópico da Embrapa no resumo de um artigo científico sobre o Ipê-amarelo, embora ali se adote uma designação científica diversa da espécie (Tabebuia alba. Outra taxonomia encontrada é Tabebuia chrysantha) menos usual hoje em dia, é deveras elucidativo:
“Ipê-amarelo: NOMES VULGARES NO BRASIL: aipê; ipê e ipê-do-cerrado, em Minas Gerais; ipê-amarelo-de-folha-branca; ipê-branco, em Minas Gerais e no Paraná; ipê-dourado, no Estado de São Paulo; ipê-mamono, em Santa Catarina; ipê-mandioca, ipê-ouro, ipê-tabaco e ipê-vacariano, no Rio Grande do Sul; ipê-pardo; ipê-da-serra, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina; ipezeiro; pau-d'arco-amarelo e taipoca, na Bahia e em Goiás. NOMES VULGARES NO EXTERIOR: lapacho, na Argentina e lapacho-amarillo, no Paraguai.”
Ora, paranaenses, com seu ipê-dourado, e catarinenses, com ipê-ouro, vão para o trono. Vão ou não vão? (cantarolo Chacrinha) Mas o mineiro ipê-do-cerrado me agrada muito.
Fato cultural relevante
Temos, ainda fresquinhos, três singles do balacobaco.
Você devia ouvir logo, antes que caiam no sumidouro do streaming e no esquecimento, como invariavelmente ocorre com a música de qualidade e muitos artistas de grande talento (o lixo musical ao menos pode ter o consolo de que um dia viralizou e conheceu a fama na internet, fama por vezes planetária).
A ordem algorítmica é a versão digital da doença de Alzheimer.
I
Anat Cohen e seu Quartetinho anunciam novo álbum, depois de uma promissora estreia em 2022, com uma indicação ao Grammy. A clarinetista junta-se a Vitor Gonçalves (acordeom e teclados), o israelense, como Anat, Tal Mashiach (violão e contrabaixo) e a James Shipp (percussão e vibrafone).
“Paco”, o single chamariz, composição de Mashiach, é um tema melodioso e envolvente estruturado no violão do autor, que parece íntimo das escalas do choro e “baixarias” do violão brasileiro.
É o que mais tenho tocado nesses dias de, digamos, remudança (cantarolo Gil e sua “Refazenda”).
II
Anna Paes, que se estabeleceu como a melhor cantora da obra de Guinga (não é pra qualquer bico) com seu álbum de 2022, anuncia uma continuidade dessa vertente com a canção “Borboleta de Louça”, de Guinga, Mário Sève e Paulinho da Viola.
Seu timbre é propício à melancolia saudosista que marca as mais belas melodias de Guinga, bem como sua inconfundível e etérea tessitura.
III
Jards Macalé e Joyce Moreno, mitos da canção popular, autores de obras distintas, se juntam em grande forma neste “Um Abraço do João”, composição de ambos.
Aos 76 anos, Joyce segue a emitir lindamente, com o mesmo brilho da estreia em estúdios, aos 16 anos, num LP do grupo Sambacana, liderado por Pacífico Mascarenhas (1935-2024), lá se vão 60 anos.
Macalé, aos 81, não deixa por menos.
A canção é jovial, bem letrada, bem harmonizada, e faz uma refrescante homenagem à memória de João Gilberto (1931-2019)
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