Os biliosos (“haters” não, por favor)
Nesta edição: tu marietarás, eu buarquirei, pois a história adora uma repetição, como prova a feminista Deborah De Robertis, mas nosso caso não é só isso
Opa!
A partir deste domingo, você pode ler aqui, ao ritmo dos velhos folhetins (em treze capítulos semanais) e com exclusividade, meu “Réquiem do Boi – Memórias Melódicas”.
Ficará em uma nova seção da página dedicada à ficção, aliás Folhetim.
Sábado cai um post curto sobre a história desse pequeno volume de contos, que inteiro pode ser lido como novela, e seu significado em minhas vidas por escrito, ou em minhas vidas passadas a limpo.
O Escrevidas segue na mesma batida, com pizzas quentinhas servidas às quintas-feiras.
Eu, você e uma parte do planeta entramos numa fria.
A falsificação da realidade soltou no ar uma espécie de vírus que ameaça a saúde cívica e mental do planeta.
Para um jornalista profissional essa nova normalidade é especialmente espinhosa. Não vou chorar o leite derramado.
Mas não posso deixar de lado a dinâmica do mal, aceitar sua existência como outro fato da vida e deletar quem me pareça infectado.
O enfermo não tem consciência de sua enfermidade e vive em dessintonia com a verdade factual e o real.
Tentar entender o que nos molesta traz ao menos algum alívio, certo equilíbrio.
*
A desinformação como estratégia de poder é do arco da velha.
Mas, em nossos dias, se abriu uma janela de oportunidade, isto é, abriram-se bilhões e bilhões de janelas, telas, telões e telinhas coloridas, tudo online e a piscar.
A internet, as redes sociais e a inteligência artificial caíram do céu e brotaram do inferno no mesmo fuso.
Mitômanos, golpistas, organizações criminosas, traficantes de tudo, velhacos, ideólogos, máfias, ditaduras, negacionistas, conspiradores — como exemplos — entraram para o ramo do embuste, da trampa, da treta, da manta e da maranha.
Arrasaram. O negócio gira fortunas, balança o coreto na política, dá influência, poder e glória.
*
A mentira tem público garantido.
Arrebanha multidões que vivem fora de si e da realidade — dos sem noção aos que não sabem que nada sabem — e fantasiam que sabem tudo.
A falsificação é o maná dos biliosos — palavra que me soa bem melhor que o inglês haters (odiadores, cruz credo).
A fraude é um direito dos biliosos ilhados por inimigo e obscuras tramas por todos os lados.
Biliosos vivem no combate contínuo, celular na mão, em associação e engajamento.
Marcham na vanguarda do apocalipse.
Alguns se impõem com vagas fantasias sobre o resgate de um passado medieval recauchutado, ou de um Velho Testamento renovado.
Outros aferram-se na retaguarda de ditaduras — “democracias efetivas” em novilíngua progressista.
*
Vidas, trabalho, conquistas, memórias — mundos se partem e se perdem num segundo.
Tudo queimado, soterrado, levado água abaixo.
Populações são removidas à força de onde vivem, pestes matam milhões, massacres estouram no noticiário como busca-pé, barcos de imigrantes afundam toda hora.
E tudo isso satisfaz a sanha do bilioso. Restos, destroços e cadáveres são insumos na fabricação de fake news.
*
O bilioso tem sua própria pornografia.
A conspiração libera serotonina, dopamina e endorfina no sangue do bilioso, além de mais bile.
O negacionismo é seu mel; a desgraça o faz sentir-se vivo.
O ardil aumenta sua autoestima; é no embuste que o bilioso se autossatisfaz.
*
A mentira é o fuzil dos biliosos, e a violência e a guerra são a continuação da mentira por outros meios — adaptando o dito do militar e teórico prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831).
Sem a energia do ódio e da farsa, o bilioso ideológico desinfla feito balão furado. Sobram retalhos e um vazio.
*
Mas o bilioso é antes de tudo um forte.
Ele se recompõe e enche de si de novo.
O ressentimento, o descolamento, a humilhação, a revolta, tudo isso faz ressurgir vontades de poder biliosas.
Nasceram daí o homem-massa e a rebelião das massas, como identificou há quase cem anos o espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955).
Nasceram novas estratégias de embuste.
É a história que expõe essa face da condição humana, como o véu de Verônica guarda o rosto de Cristo.
A história é a grande fotógrafa do descaminho humano.
E não sou eu quem repete essa história, é a história que adora uma repetição.
Ah, sim, pode-se embutir alguma filosofia numa canção infantil, como nesta deliciosa “Rebichada”, de Chico Buarque, Luis Enriquez Bacalov e Sergio Bardotti (“Os Saltimbancos Trapalhões”, 1981).
“[...] Essa história é mais velha que a história
Dos tempos de glória do velho barão
Quem não sabe de cor essa história
Refresque a memória e me preste atenção
Não sou eu quem repete essa história
É a história que adora uma repetição
Uma repetição
Uma repetição
Uma repetição”
Refrescar a memória e prestar atenção pode até ser um antídoto contra a desinformação e o veneno da farsa.
Só que não funciona com o bilioso, para quem a felicidade (como a conspiração) sempre será uma arma quente.
*
O que vemos no Sul me lembrou outra canção, também na madureza de seus 40 e poucos anos.
Nestes versos de “A Terceira Lâmina”, a palavra “terra” promovida a Terra expressaria divinamente o instante apocalíptico da humanidade, na voz do cantador Zé Ramalho.
“E virá como guerra
A terceira mensagem
Na cabeça do homem
Aflição e coragem
Afastado da terra [Terra]
Ele pensa na fera
Que o começa a devorar”.
*
A vida média se prolonga graças à medicina e novos recursos de preservação e restauração do organismo humano.
Hoje há mais de meio milhão de pessoas com cem anos vivendo no mundo, contra 95 mil há 34 anos.
É uma dádiva de nossa era, uma conquista da humanidade.
Já mandarins do Vale do Silício acham pouco.
Investem os tubos pra prolongar a vida indefinidamente. Miram a eternidade de super-heróis da Marvel.
O professor de filosofia política de Harvard, Michael J. Sandel, conselheiro de bioética de Joe Biden, comentou em entrevista ao jornal “El País” o sucesso de startups e empresas cujo missão é parar o envelhecimento e deter a morte.
“Desconfio muito dos milionários do Vale do Silício que estão investindo centenas de milhões de dólares na extensão da vida. Creio que é uma estranha preocupação entre todas as prementes necessidades sociais e humanas”, ele diz, e continua:
“Investir em pesquisa genética que possa permitir às pessoa viver uma vida saudável, isso está claramente do lado da medicina. Mas estender os limites de uma vida humana normal por si só... Creio que seu interesse em viver para sempre tem algo de arrogância. Talvez isso seja injusto mas reflete um certo vazio, ou falta de sentido em suas vidas, porque se trata apenas de adicionar tempo. E adicionar tempo sem nenhum propósito, creio, é algo moralmente vazio.”
*
*
Deborah De Robertis, artista feminista, autora da obra acima, na notícia velha da semana passada, tem seu caso com o pintor francês Gustave Colbert (1819-1877).
Este “A Origem do Mundo” (1866) — que já pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) — parece ferir os brios militantes dessa mulher de 40 anos, uma franco-luxemburguesa.
Dez anos antes de pichar o quadro com o slogan do “Me Too”, De Robertis já havia feito a performance “O Espelho da Origem”. Está no Youtube, aqui.
A artista se deixa filmar sentada no chão, diante do mesmo quadro, no museu d’Orsay, com as pernas em arreganho e a vulva aberta com as mãos.
Se dificilmente se tacharia a obra de Colbert de pornográfica, o happening de De Robertis atravessa a linha vermelha.
Além da celebração da própria artista, gestos como esses provavelmente serão logo esquecidos — já foram, aliás — sem produzir qualquer ação sobre a realidade.
A tela de Colbert, pintada há quase 150 anos, não foi danificada.
Seguirá à disposição do público — admiradores e detratores — que irá se contentar, espera-se, em postar-se diante do quadro, quieto, por alguns minutos.
Diferentemente de sua obra, Colbert está mortinho da silva. Morreu no exílio na Suíça, depois de cumprir pena de prisão por envolvimento na Comuna de Paris.
*
Já Woody Allen é um morto-vivo, tóxico quanto uma moreia.
*
O vandalismo contra pinturas, estátuas e pessoas — via censura e “cancelamento” — é um signo de nosso tempo.
O alicerce disso tudo é a balda do anacronismo... epa, chama o Houaiss:
“Anacronismo – 1. erro de cronologia que [...] consiste em atribuir a uma época ou a uma personagem ideias e sentimentos que são de outra época, ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de uma época a que não pertencem.”
… liberdades tomadas com a história como meio de promover justiça social mas podemos chamar de justiçamento ideológico.
*
Feminicídio, estupros em guerras, opressão da mulher em toda parte, abjetamente em países como Irã ou Arábia saudita, estão aí.
Condenar o tratamento dispensado a mulheres nesses países é tido como uma espécie de colonialismo por ideólogos do relativismo cultural, ou seja, imposição de valores ocidentais a uma cultura diversa.
*
Os museus, como os livros, vão perdendo encantos à medida que abraçam a pedagogia moralista.
Contratam-se novos curadores, mexem em acervos e refazem-se espaços expositivos.
Desde a Idade Média ou da Santa Inquisição a arte não era tão patrulhada.
Livros são banidos, bibliografias acadêmicas são examinadas com lupa em conselhos, escritores vivos e mortos são condenados ao esquecimento, obras históricas têm trechos ofensivos — à moral e aos bons costumes vigentes — reescritos;
Editoras raramente fogem ao catecismo dessa moral e desses bons costumes.
Concursos públicos e premiações praticamente antecipam seus vencedores no anúncio dos certames.
Tudo vai se submetendo à nova ordem, aos novos Mandamento, que hoje múltiplos de dez.
Escrevidas é uma pizza de palavras — metade ensaio, metade crônica. A fornada sai às quintas-feiras antes do meio-dia ou a qualquer hora em edição extraordinária.
A farinha é do moinho do jornalismo desde 1986.
Nos ingredientes vão música, literatura, cinema, TV, arte, ciência, ideias e um pingo de poesia — com o tempero do inesperado.
Um mix de ideologias produziu a má consciência dos carnívoros. Vivemos a era da invisibilidade do boi, do porco e da galinha. A bicharada foi reduzida à proteína.
— O restaurante X serve uma proteína que é de comer de joelhos! — posso ouvir alguém exclamar.
*
O jornalista e crítico de cinema José Geraldo Couto, cracaço, comentou para a Rádio Batuta quinze temas que ajudam fazer a história do cinema.
A lista vai de “Moon River” (“Bonequinha de Luxo”), de Henry Mancini, ao tema de “O Último Tanto em Paris”, do saxofonista tenor argentino Gato Barbieri (1932-2016), passando por “Três Homens em Conflito”, de Ennio Morricone (1928-2020).
Couto inclui “Bye Bye Brasil” (música de Roberto Menescal, letra de Chico Buarque), com este parecer do qual não discrepo:
“A canção [...] é a tradução musical mais que perfeita do road movie de Cacá Diegues, uma viagem de descoberta de um Brasil em vertiginosa transformação, onde ‘o sol nunca mais vai se pôr’. Por que 'mais que perfeita’? Porque a música, a meu ver, é melhor que o filme, realizando cabalmente uma promessa que este anuncia, mas não cumpre.
*
Um álbum novo do pianista de jazz Fred Hersh é uma bênção e sempre me alegra.
O homem parece ter o dom de extrair da música a essência da expressão emocional.
“Silence, Listening” sai pela gravadora ECM.
Hersh trabalhou com o produtor Manfred Eicher na lendária acústica do auditório da rádio Suíça, em Lugano.
*
Quem pôde ver no canal Filme & Arts o “Recital de Viena” da pianista Yuja Wang, de 2002, pode também ter se impressionado com sua firme desenvoltura com um repertório incomum e instrutivo.
O programa aliou compositores clássicos a nomes pouco lembrados em salas de concertos: Isaac Albéniz (1960-1909), Alexander Scriabin (1872-1915), György Ligeti (1923-2006), Philip Glass (87 anos) e Arturo Márquez (73 anos).
A gravação pela Deutsch Grammophon acaba de sair, em CD, vinil (2 LPs) e na versão digital.
*
Já era para eu ter dado um toque aqui sobre “Prosa & Papo”, novo álbum de Dori Caymmi, 81 anos em agosto. Saiu no mês passado pela Biscoito Fino.
É uma beleza que tenhamos um compositor como ele em atividade, depois de se aposentar, ter regressado dos Estados Unidos e ir viver em Petrópolis.
Resmungão e dominador no seu ambiente, Dori entregou a produção do disco ao baixista, compositor e arranjador Jorge Helder.
Foi uma convivência difícil, como contou numa entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”:
"Como sei muito o que quero, resisto aos palpites e às vezes até saio do sério. Jorge Helder foi um herói por me aguentar, com uma gentileza e um respeito que em certos momentos não mereci".
Convidaram Mônica Salmaso e Renato Braz, pra Dori os melhores cantores em atividade no país, além do MPB4 e do também cantor João Cavalcanti.
Um disco do artista, acho que deste os primórdios da carreira, traz um tom de saudade do Brasil, é um de seus encantos, como a evocação do pai e a mão firme do grande violonista que é nos arranjos, como sua reverência filial a Tom Jobim (1927-1994) e Ary Barroso (1903-1964).
Dori prima pela delicadeza e elegância. A instrumentação nunca excede a natureza da canção e a grave maciez de sua voz brota límpida como nascente.
Como Jobim, preza o apelo ecológico antes que se falasse nisso.
A exemplo, nesse álbum, de “Prosa & Verso” (com Paulo César Pinheiro), um passeio por falares do povo sobre coisas da terra, plantas e bicho, que ele divide com o MPB4.
“Uma coisa é prosa
Outra coisa é papo
Sapopema é tronco, perereca é sapo
Jenipapo é fruto, geringonça é trapo
Guariroba é penca, dendezeiro é cacho [...]”
Ou “A Água do Rio Doce” (também com Pinheiro), arranjada com voz, violão e fagote.
“[...]A água que segue correndo em desvio
Riscando seu leito de um jeito arredio
Tem medo de gente no seu rodopio
E o medo que sente não é desvario
Que é gente que mata a água do rio”
*
Os anos me fizeram um amador de árvores e plantas. Deve ser da idade.
Temos muitas em casa. Ainda que driblando uma ciumenta tutora, ajudo a cuidar dessas criaturas companheiras e me pego ao acaso a “falar com a samambaia de um vaso”.
Daí meu apego ao samba “A Força Secreta da Alegria”, de Gilberto Gil e Jorge Mautner
A faixa abre o LP “Bomba de Estrelas” (1981), de Mautner, mais conhecido por “Maracatu Atômico”.
“Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Que roseira bonita
Que me olha tão aflita
Pela chuva que não vemCorro, pego o regador
Ela me olha com amor
Sabe o que lhe convém
Sabe o que lhe convém [...]
Às vezes falo ao acaso
Com a samambaia de um vaso
Em cima da janela olhando a baía
Em cima da janela olhando a baía
Usamos telepatia
Falamos da vida
Sobre os amores das flores
E a força secreta daquela alegria [...]"
*
Uma das mais inspiradas melodias de Guinga passeia entre a tristeza do noturno e a tule da alegria.
O letrista Aldir Blanc (1946-2020) se esmerou no lirismo. Escreveu algo à altura das névoas que a música evoca.
Costurou na melodia verbos que se evolam como por encanto, inspirado na história de Peter Pan.
Verbos como neblinar ou vagalumear parecem inventados mas são dicionarizados e regulares.
Com duas exceções: “marietarás” e “buarquirei”.
A letra é anterior à separação de Chico Buarque e Marieta Severo, depois de viverem 33 anos juntos.
Por décadas, o casal formou uma espécie de entidade única no imaginário dos fãs, sinônimo de charme e talento conjugados à fortuna de uma vida a dois.
Recomendo que se ouça duas versões instrumentais, que vão na playlist, antes da canção.
Uma gravação de Guinga com o clarinetista italiano Gabrielle Mirabassi, outra em violão solo com Arthur Nestrovski. Vão na playlist.
Falo de “Valsa pra Leila”, gravada pela homenageada, Leila Pinheiro, no álbum “Catavento e Girassol” (EMI, 1996). A instrumentação escolhida pelo arranjador contrasta um pouco com a delicadeza da melodia.
Minha versão favorita é de Anna Paes, no seu álbum da Kuarup dedicado a Guinga, de 2022.
Anna se revelou a melhor intérprete do compositor carioca.
“Tu te esfumarás, me neblinarei
Sobre os telhados, galáxias azuis
Sonambularás, te voltearei
Gatos lambendo as estrelasWendy e Peter Pan sem o amanhã
Nunca, pra nós dois, é sempre cedo
Marietarás, eu Buarquirei
Em dois cavalos com asas de luzTu te nublarás, me eclipsarei
Nuvens em nossa cabeça
Toma, Peter Pan, só um lexotan
Pra que tanto amor não te enlouqueçaVagalumearás por sobre o campo
Eu virei do mar teu pirilampo
Como um circo aceso, o céu da manhã
Saudará o amor que não dormirTu desabarás, eu despencarei
E o mar azul vai nos cobrir”
*
Por ora é isso, bicho, acho.
Salve, saravá e um abraçaço!