Para desentristecer
A tristeza é a tese, a alegria, antítese, e o samba, a síntese, ou a Revolução com pandeiro e reco-reco
Camaradas,
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Era dezembro de 1937, Orlando Silva (1915-1978) lançava “Alegria”, samba icônico do baiano Assis Valente (1911-1958) com o mineiro Durval Maia.
Imagino o bem-estar que essa música provocou ao se difundir nas ondas do rádio, no éter, como se falava. O meio se popularizava, como os discos de 78 rotações.
“Alegria/ Pra cantar a batucada/ As morenas vão sambar/ Quem samba tem alegria”, entoava o Cantor das Multidões, acompanhado pelos Diabos do Céu, orquestra de Pixinguinha.
Penso em bocas escancaradas, pelos cantos das casas, em coro com as emissoras radiofônicas.
A segunda estrofe de “Alegria” já é mais familiar, desde que Caetano Veloso a citou na introdução de “Festa Imodesta”:
“Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer!”
Como diz o jornalista e pesquisador Pedro Paulo Malta, “eis o mistério do samba, em quatro versos”.
Tem uma terceira parte, cadenciada:
“Esperando a felicidade/ Para ver se eu vou melhorar/ Vou cantando, fingindo alegria/ Para a humanidade/ Não me ver chorar”.
Apenas alguns anos antes, em 1934, Carmem Miranda galgara o sucesso com outro samba de Assis Valente — mais tarde interpretado por Maria Bethânia, Nara Leão e Chico Buarque — o irresistível abre-alas “Minha Embaixada Chegou” (embaixada também era a parte do cortejo real nas congadas, na tradição africana, por extensão um grupo carnavalesco):
“Minha embaixada chegou/ Deixa meu povo passar/ Meu povo pede licença/ Pra na batucada desacatar// Vem vadiar no meu cordão/ Cai na folia, meu amor/ Vem esquecer tua tristeza/ Mentindo à natureza/ Sorrindo à tua dor”.
Como deu samba estes versos: “Vem esquecer tua tristeza/ Mentindo à natureza/ Sorrindo à tua dor”.
Assis Valente, de vida triste e trágica, era cracaço, um dos nossos gigantes.
Ele nos deu um mote, um motivo buscado na levada do samba, uma sinopse sincopada da alma popular no afã de amolecer a dureza da vida, inclusive a de compositores pobres, por essas quadras.
Mas antes dele, veja você, ainda estávamos em agosto de 1933, quando Francisco Alves e Castro Barbosa, acompanhados pela Orquestra Copacabana, tiravam pela Odeon “Feitio de Oração”, de Noel Rosa (1910-1937) e Oswaldo Gogliano, ou melhor, Vadico (1910-1962).
Em seu álbum de 2003 com o baixista Ron Carter, “Entre Amigos”, Rosa Passos nos deu, depois de muitos e deliciosos registros, a versão que tenho por definitiva da canção.
Tenho cá pra mim que o samba nunca mais seria o mesmo depois destes versos:
“Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia dentro da melodia”
(…)
“O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração”
O samba toma corpo na década de 1930, ganha tônus comercial e surgem suas grandes estrelas, ao acariciar um gosto e um sentimento em evolução.
Essa Era de Ouro equivale à fundação de uma nacionalidade musical e cultural.
Por essas e outras, Caetano, depois de louvar vários gêneros atuais, sofrência inclusa, proclama o refrão “sem samba não dá”, na penúltima faixa do álbum “Meu Coco” (2021).
Eu sei, vamos pela quaresma, e estou a sambar.
Esse é apenas um recorte, como se diz, de um repertório canônico, um cânone pessoal, é claro, que há de valer entre outros tantos possíveis, e entre tantas interseções igualmente canônicas.
Isso posto, peço essa licencinha poética de nada, coisinha nenhuma, para brincar com a dialética no salão.
Dialética no duro, na acepção hegeliano-marxista que circulava com um abracadabra entre nós, jovens universitários — em viés de carnavalização, é verdade.
Era a dialética com a qual, na faculdade de jornalismo, tentavam nos incutir a luz, a verdade, a vida — esfera espiritual onde tanta gente — hoje a gramar nas margens extremas de atroz Irracionália — parece ter se achado.
O negócio era assim, tentarei resumir de reco-reco na mão:
A tese representava em que pé o mundo estava. Essa realidade continha contradições internas, tal antítese; daí vinha, pomposamente, sempre como lei da História, a síntese, a superação rumo à redenção espiritual ou material da humanidade, conforme. Era a Revolução.
Se o cabeção do Georg Wilhelm mirava o Estado, lugar do Absoluto, o barbudo e não menos cabeçudo Karl previa uma goleada de 7x1 do Trabalho sobre o Capital — e o advento glorioso do Comunismo.
Isso ia dar, para ficar entre os vivos, em Kim Jong-un(s) e Maduro(s).
Mas chega de filosofias, entro no cordão e volto ao texto.
Sem canivete no cinto mas de pandeiro na mão, ofereço a você, com atraso, minha dissertação ligeira, com direito (ah, aqueles tempos) a uma “prise” de lança-perfume.
Ponho minha própria dialética na avenida, depois, digamos, da sonora revisão bibliográfica inicial, com as graça de Noel e Assis Valente:
A tristeza é a tese, a alegria, que a tristeza contém, contraditória, a antítese, e o samba, a síntese. O Objetivo? Tornar a vida mais vivível, marcar uma civilização gozosa, brasileira, como pregava Darcy Ribeiro.
Eis a pauta compassiva de nossa primeira, única e verdadeira Revolução, ainda que existencial.
Se a tristeza apavora — e já chego ao samba caetânico — o samba é seu antídoto, com extrato e sumo de alegria na fórmula.
Para espantar a tristeza, boa receita é recordar, cantando, “Anda Luzia”, marcha pouco lembrada de João de Barro (Braguinha), gravada em 1946 por Sylvio Caldas, com versões deleitáveis de Maria Bethânia e Toquinho:
“Anda, Luzia/ Pega um pandeiro, vem pro carnaval/ Anda, Luzia/ Que essa tristeza lhe faz muito mal// Apronta a tua fantasia/ Alegra teu olhar profundo/ A vida dura só um dia, Luzia/ E não se leva nada desse mundo”.
Avanço quase duas décadas para iluminar minha dialética de boteco e roda de samba.
Baden Powell e Vinicius de Moraes, que moraram juntos e, juntos, bebiam fábulas, juntos compuseram o hoje em tudo clássico “Samba da Bênção”, gravado por muita gente bamba, dentro e fora do país.
Seu lançamento, em 1963, estava no LP da Elenco “Vinicius e Odete Lara”, com arranjos e regência do maestro Moacir Santos.
É bom citar quatro de suas estrofes definidoras, por conceituais, do samba e da canção popular brasileira (talvez você queira ir ouvindo a playlist, abaixo, enquanto lê meu colunão).
“É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
(...)
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
(...)
A ressoar Noel e Valente, com ternura, engenho e arte, Vinicius ao recriá-lo, reforça o alicerce do nosso principal divertimento, mais que isso, marco civilizatório.
Para o poeta, beleza é destino, e o samba, que brota da alegria que há no ventre da tristeza, o melhor veículo para se chegar a ela.
Então voamos para o início dos anos 1990.
Caetano toma o bastão de Noel, Valente e Vinicius para compor “Desde que o Samba É Samba”
O artista vai criar uma espécie de fenomenologia do samba, que pode ser reza e consolação, na coroação da beleza.
João Gilberto tinha que gravá-la, canonicamente, e gravou mesmo, no disco “Voz e Violão” (1999). (Repare a escola de samba, cuja essência seu violão contém).
“A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite, a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora”
E ainda:
“O samba é pai do prazer/ o samba é filho da dor/ o grande poder transformador”, que é uma outra maneira de expressar minha dialética sambada.
E este verso, “Tudo demorando em ser tão ruim”?
Pois é, poesia.
*
Há sambas, muitos, que se fixam na tristeza e na dor, quando não na melancolia.
Mas se não buscam o confronto da antítese, esse sentimento é latente no canto, que haverá sempre alegria de se cantar um samba;
É o cantar que, sabemos, “refresca a alma”, que “adoça o sofrer”, que “zomba da morte” — cantarolo, claro, a toada que introduz a trilha de Antonio Carlos Jobim da série “O Tempo e o Vento” (LP de 1985, CD de 2003).
E aqui novamente peço a Assis Valente para subir no palco.
“Fez Bobagem”, samba lançado por Aracy de Almeida (1914-1988) em janeiro de 1942, também gravado por Nara, Elza Soares, Bethânia, entre outros versionistas de classe, é de cortar o coração:
“Meu moreno fez bobagem/ Maltratou meu pobre coração/ Aproveitou a minha ausência/ E botou mulher sambando no meu barracão// Quando eu penso que outra mulher/ Requebrou pra meu moreno ver/ Nem dá jeito de cantar/ Dá vontade de chorar/ E de morrer”.
E vem esta passagem que bate como epifania (revelação) literária (nada ver com a apropriação publicitária indébita da expressão joyceana):
“Deixou que ela passeasse na favela com meu peignoir
Minha sandália de veludo deu a ela para sapatear
E eu bem longe me acabando
Trabalhando pra viver
Por causa dele dancei rumba e foxtrote
Para inglês ver.”
Dá mesmo vontade de chorar.
Valente, como Ary Barroso (1903-1964), são precursores no emprego da voz feminina na canção, ainda que Ary ponha a mulher quase tão submissa quanto a de Chico Buarque em “Com Açúcar com Afeto”, tal samba renegado.
Mas “Camisa Amarela” está num nível de sofisticação e beleza que apenas Noel, Braguinha, Wilson Batista, Ismael, Ataulfo, Caymmi, Jobim, Paulinho da Viola, Bosco e Blanc, letrista como Paulo César Pinheiro, Chico, Caetano, Gil… e ainda uns poucos foram capazes de alcançar.
Foi gravado, lindamente, pela primeira vez, mais uma vez, por Aracy de Almeida, era 1939, depois relida por deus e o povo, em geral com o apuro de um Caetano e uma Rosa Passos, que estão em nossa playlist.
Sua lírica é conformada, mas verossímil em sua época; a mulher não se importa que seu homem vadie, desde que volte para seus braços.
Seguimos o marido folião nas ruas de um Rio de Janeiro no Carnaval, levados por seus olhos melancólicos, a seguir seu “pedaço” — a lembrar de quem, na buarquiana “As Vitrines”, vai “catando a poesia” que a amada deixa pelo chão:
“Encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela
Cantando a "Florisbela", a "Florisbela"
Convidei-o a voltar pra casa em minha companhia
Exibiu-me um sorriso de ironia
E desapareceu no turbilhão da galeria
Não estava nada bom
O meu pedaço na verdade estava bem mamado
Bem chumbado, atravessado
Foi por aí cambaleando, se acabando no cordão
Com o reco-reco na mão
Mais tarde o encontrei num café zurrapa
Do Largo da Lapa, folião de raça
Bebendo o quinto copo de cachaça
Voltou às sete horas da manhã, mas só na quarta-feira
Cantando "A Jardineira", "A Jardineira"
Me pediu, ainda zonzo, um copo d'água com bicarbonato
O meu pedaço estava ruim de fato
Pois, caiu na cama e não tirou nem o sapato
Roncou uma semana, despertou mal-humorado
Quis brigar comigo, que perigo, mas não ligo
O meu pedaço me domina, me fascina, ele é o tal
Por isso não levo a mal
Pegou a camisa, a camisa amarela
E botou fogo nela
Gosto dele assim
Passou a brincadeira e ele é pra mim”
*
Em 1996, Paulinho da Viola, outro dos nossos geniais octogenários, vai desfilar sua realeza na iluminada passarela da grandeza de sua obra.
Para nos presentear com um samba perfeito — e perfeitamente herdeiro de tudo que ouvimos até aqui — que eu levaria para ouvir abandonado em qualquer ilha deserta.
É uma composição tão filosófica quanto redentora, tão triste quanto alegre, tão histórica e “raiz” quando inovadora, tão poesia lírica quando ode clássica.
“Bebadosamba” (do álbum desse nome) é o samba por excelência, mais que aula, é um curso inteiro, sim, porque excele em sua estrutura ritualística, com recitativo, divisão incomum e alucinante magnetismo rítmico. Eis a letra
“Um mestre do verso de olhar destemido,
Disse uma vez, com certa ironia:
—Se lágrima fosse de pedra
Eu choraria
E eu, Boca, como sempre perdido,
Bêbado de sambas e outros sonhos
Choro a lágrima comum,
Que todos choram
Embora não tenha, nessas horas,
Saudades do passado, remorso
Ou mágoas menores
Meu choro Boca, dolente
Por questão de estilo
É chula quase raiada
Solo espontâneo e rude
De um samba nunca terminado
Um rio de murmúrios da memória
De meus olhos, e quando aflora
Serve, antes de tudo,
Para aliviar o peso das palavras
Que ninguém é de pedra.
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadosamba
Meu bem
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadachama
Também
(...)
Coração partido
Verso de improviso
Bêbado martírio
Desta vida
Pelo coração
BEBADACHAMA (Chamamento)
Chama que o samba semeia
A luz de sua chama
A paixão vertendo ondas
Velhos mantras de aruanda
Chama por Cartola, chama
Por Candeia
Chama Paulo da Portela, chama
Ventura, João da Gente
E Claudionor
Chama por mano Heitor, chama
Ismael, Noel e Sinhô
Chama Pixinguinha, chama
Donga e João da Baiana
Chama por Nonô
Chama Cyro Monteiro
Wilson e Geraldo Pereira
Monsueto, Zé com fome e Padeirinho
Chama Nelson Cavaquinho
Chama Ataulfo
Chama por Bide e Marçal
Chama, chama, chama
Buci, Raul e Arnô Canegal
Chama por mestre Marçal
Silas, Osório e Aniceto
Chama mano Décio
Chama meu compadre Mauro Duarte
Jorge Mexeu e Geraldo Babão
Chama Alvaiade, Manacéa
E Chico Santana
E outros irmãos de samba
Chama, chama, chama
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadosamba
Meu bem
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadachama
Também”
Senão curso, “Bebadosamba”, com sua segunda parte “Bebadachama”, um “Chamamento”, é um roteiro para se entender a trajetória do ritmo, absurdamente rico e diverso, absurdamente indistinguível de nós, do nosso ser.
Quem tenha interesse em se aprofundar nessa história deve buscar por “chula” e “chula raiada”, para começar, mas sobretudo deve ouvir os criadores reverenciados, chamados por Paulinho.
Chame-os também, como faz nosso principesco mestre.
A propósito, além desse título nobiliárquico, unanimemente outorgado por seus ouvintes, “Príncipe do Samba”, Paulinho bem merece um honoris causa de filósofo do samba.
Sem nunca sofismar, o compositor estabelece um certo racionalismo em “Filosofia do Samba”, cujo refrão diz “Mora na filosofia/ Morou Maria/ Morou Maria”.
Igualmente filosóficos são seus sambas “Solução de Vida (Molejo Dialético)”, com Ferreira Gullar, “Para ver as Meninas”, “Timoneiro”, com Hermínio Bello de Carvalho, ou “Só o Tempo”.
Na mesma pegada filosófica e poética acompanhamos o passeio sereno de um sambista pela cidade, na cadência deliciosa de “Coisas do Mundo, Minha Nega”, gravada pelo artista em 1968.
O sambista da letra parece ter realizado a síntese e leva tristeza e alegria no bojo do seu violão. É outro assombro na obra de Paulinho da Viola — sóbrio, delicado, exato.
Acho ainda mais transcendente a versão, melhor arranjada, de Dori Caymmi, que é do ramo, no CD “Contemporâneos”, de 2003). A letra diz:
“Hoje eu vim minha nega
Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome
Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome
Venho do samba há tempo, nega
Venho parando por aí
Primeiro achei Zé Fuleiro, que me falou de doença
Que a sorte nunca lhe chega
Que está sem amor e sem dinheiro
Perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar
Puxei então da viola
Cantei um samba pra ele
Foi um samba sincopado
Que zombou de seu azar
(...)
Depois encontrei Seu Bento, nega
Que bebeu a noite inteira
Estirou-se na calçada
Sem ter vontade qualquer
Esqueceu do compromisso que assumiu com a mulher
Não chegar de madrugada
E não beber mais cachaça
Ela fez até promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba pra ele que sorriu e adormeceu
(...)
Por fim achei um corpo, nega
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro a causa da discussão
Foi apenas um pandeiro
Que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, vim-me embora
Ninguém compreenderia um samba naquela hora
Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo a forma de se viver
As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender
As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender
(...)”
Paulinho, aí pelos 25 anos, escreve um samba com um fecho destes:
“As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”.
É, precisamos, precisamente.
*
Agora, a dialética do samba e essa dissertação mixuruca pedem passagem para sair de órbita.
Ouçamos Nelson Cavaquinho (1911-1986), a voz grave, áspera e profunda deste outro inventor de sambas.
No lugar da dor, da tristeza que requebra para as bandas da alegria, Nelson essencializa o samba na ontologia do bem e do mal:
“O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ Do mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente (...).
“Juízo Final”, parceria com Élcio Soares, foi gravada pelo artista em 1973 no álbum “Nelson Cavaquinho”.
Numa outra vertente, outro samba, Nelson não quer saber de lenitivos no originalmente samba-canção “Flor e Espinho” — composto nos anos 1950, com Guilherme de Brito e Alcides Caminha;
É gravado pela primeira vez pelo cantor Raul Moreno, em 1957, e no ano seguinte por Venilton Santos; (todas as gravações originais citadas podem ser ouvidas no acervo do Instituto Moreira Salles).
São os versos mais diretos, mais retos da canção popular.
Me lembram uma varrição na Lua, ou a ponta poética de uma lança forjada na têmpera mais dura do aço:
“Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”;
Também se chega, sambando, às raias da autocomiseração (de bom humor), com Ciro de Sousa e Babaú, autores de "Tenha Pena de Mim", samba apresentado ao público em novembro de 1937, por nossa pioneira Aracy, com ótimas versões de Zizi Possi e Beth Carvalho:
“Ai, ai, meu Deus! Tenha pena de mim/ Todos vivem muito bem/ Só eu quem vivo assim/ Trabalho e não tenho nada, não saio do miserê/ Ai, ai, meu Deus!/ Isso é pra lá de sofrer (...)”.
Pois o samba é a última instância, o último recurso do sofredor para manter-se de pé, para tocar o barco com algum alento, alguma alegria.
No mesmo diapasão está “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso;
Lançado por Nara Leão em seu LP de estreia, em 1964, é um dos sambas-rubis do mestre;
Tem grandes versionistas, de Elizete Cardoso a Beth Carvalho, de Maria Bethânia e Cazuza a Jards Macalé e Fernanda Takai;
É capaz de ferir a mais recôndita fibra de um coração de ferro:
“Sempre só
Eu vivo procurando alguém
Que sofre como eu também
E não consigo achar ninguém
Sempre só
E a vida vai seguindo assim
Não tenho quem tem dó de mim
E estou chegando ao fim
A luz negra de um destino cruel
Ilumina um teatro sem cor
Onde estou desempenhando o papel
De palhaço do amor”
(...)
Com a simplicidade transcendente de “Direito de Sambar”, o baiano Oscar da Penha, Batatinha | 1924-1997) entra no cerne da matéria sofrida:
“É proibido sonhar/ Então me deixe o direito de sambar/ É proibido sonhar/ Então me deixe o direito de sambar// O destino não quer mais nada comigo/ É meu nobre inimigo e castiga de mansinho/ Para ele não dou bola se não saio na escola/ Sambo ao lado sozinho (...)”.
*
Mas Chico Buarque, que por sinal gravou Batatinha, disse que “Águas de Março” é o mais bonito de todos os sambas.
Por sua complexidade harmônica e melódica, embora tudo nos soe muito simples na canção, trata-se, como prefiro, de um samba hors-concours, que parte do encanto do samba, em verdade da Música, para ensejar a mais pura alegria de viver, uma iluminada “promessa de vida no teu coração”.
*
Promessa de vida que também celebram “As Rosas Não Falam” e “O Sol Nascerá”, composições magistrais de seu Agenor de Oliveira, Cartola (1908-1980), que trago aqui como tributo à grande obra criada por quem foi servente de pedreiro, lavador de carros e vigia de prédios.
“As Rosas Não Falam” — samba tão reverenciado por Paulinho da Viola — foi cantado por Cartola em seu segundo LP, de 1976, pela gravadora Marcus Pereira, no mesmo ano por Beth Carvalho, logo, entre tantos artistas do primeiro time, por Emílio Santiago e Fagner (num arranjo originalíssimo ).
Me parece insensato duvidar que esta quadra não tenha sido incorporado ao ser de todo amante da música popular brasileira:
“Queixo-me às rosas
Que bobagem as rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai”
Já “O Sol Nascerá” foi escrita no restaurante Zicartola, com Elton Medeiros, em apenas meia hora, desafiados por um amigo, no início dos anos 1960.
O Dicionário Cravo Albin registra sua gravação por Cartola em seu primeiro LP autoral, aos 65 anos, de 1974, já pelo selo Marcus Pereira, depois de dividir com outros sambistas as faixas de um disco coletivo, de 1968.
Mas, recentemente, descobriu-se uma raridade: um compacto duplo (com quatro músicas, equivalente ao atual EP) de Cartola registrado em 1964, com o compositor aos 49 anos, incluindo “O Sol Nascerá”.
O EP “O Divino Cartola”, gravado com o grupo Escola de Samba do Almeidinha, do compositor Aníbal Alves de Almeida, baixou nas plataformas de streaming em 2022.
E no mesmo ano, 64, já se podia ouvir o samba no LP “Nara”, pela Elenco, e em gravação na Odeon de Isaurinha Garcia, da Odeon. Vai um trechinho:
“A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade/ Perdida// Finda a tempestade/ O sol nascerá/ Finda esta saudade/ Ei de ter outro alguém para amar (...)”.
*
O samba por certo não morrerá — ao menos enquanto houver padecimento, enquanto existirem dor e tristeza, e a tristeza gingar para o lado da alegria, enquanto não vier o tal do Humano 2.0 (Transumano), que não será alegre nem triste — muito menos poeta.
Resta-me, neste texto batucado meio que em feitio de oração, nesta loa à dialética do pandeiro e reco-reco, tomar a benção ao contar contas no mesmo rosário do “Samba da Bênção”:
“A bênção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta, todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum”
(...)
*
A bênção, Vinicius de Moraes!
A bênção, Paulinho da Viola!
Por fim, quero agradecer a
“Todo aquele/ que nos empresta sua testa/ construindo coisas para si cantar”, para fechar com os versos de “Festa Imodesta” — samba que abre o LP “Sinal Fechado” (1974), e com o qual Chico aplicou uma bela finta na censura.
O refrão manda ver:
(…)
“Acima do coração
Que sofre com razão
A razão que volta no coração
E acima da razão a rima
E acima da rima a nota da canção
Bemol natural sustenida no ar
Viva aquele que se presta a esta ocupação
Salve o compositor popular”.
É isso, por ora.
Salve e saravá!