Planeta Pó
Diarinho ecológico e sentimental de uma bruta primavera no fim do mundo. Morte e ressurreição de um colunista
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Para Carlos Moreira, Charles, camarada desde as noites estreladas e chuvosas do Quincas
Bem-vindos ao planeta Fumaça, novo look da Terra.
Como num filme de ficção barata, o globo é uma bolha de ar sujo, seco e quente. Giramos no espaço num balão lacrado.
Oh, turma da coivara, carvoeiros, mateiros, madeireiros, garimpeiros, grileiros, patriotas expansionistas de fronteiras agropecuárias, pirotécnicos, incendiários, tarados, correi, é chegada a hora de cantar.
Pois façam bom proveito.
Há 43 anos (12/09/1981), o Maracanãzinho delirava com “Planeta Água”, de Guilherme Arantes. A canção, preferida da plateia, fatura o segundo lugar no Festival MPB-Shell.
Ganha “Purpurina”, de Jerônimo Jardim, defendida por Lucinha Lins, linda. O Escrevidas paga uma dose dupla de Catuaba a quem se lembrar da melodia ou de um verso da letra. A vaia a Lucinha, coitada, ainda ressoa no largo do Maraca.
O samba “Mordomia”, de Ary do Cavaco e Gracinha, no gogó de Almir Guineto, fica em terceiro, que injustiça.
“Planeta Água” teve uma sobrevida em versões de Fafá de Belém, Zé Ramalho e Sandy & Júnior, de que me lembre.
Hoje é uma das músicas mais datadas da MPB; o “Ébrio” (1936), de Vicente Celestino, deve ter mais audições.
Mais fácil alguém cantarolar no chuveiro “Amélia” ou “Rock da Cachorra”.
Quem se arriscar a soltar a voz nas estradas com o refrão “Terra! Planeta Água” vai acabar confundido com um atleta do hipismo vegano (hobby horsing), praticado com cavalinhos-de-pau.
A balada (de levada sertaneja) nasceu envelhecida, a sinalizar o começo do fim de uma centenária era de ouro da canção popular.
“Água que nasce na fonte serena do mundo
E que abre um profundo grotão
Água que faz inocente riacho e deságua
Na corrente do ribeirão”
Arantes compôs bonitas melodias ao piano inspiradas em Elton John (“Meu Mundo e Nada Mais”, trilha da novela “Anjo Mau”, de 1976, é uma perfeição), mas versos assim são de roer o mocotó:
“Águas escuras dos rios
Que levam a fertilidade ao sertão
Águas que banham aldeias
E matam a sede da população”
É trágico ver rios amazônicos puro deserto; serras como a do Caraça arder durante semanas — e ver finalizada a grande obra civilizatória da indústria extrativa mineral nas Minas dos Matos Gerais.
“Água que o sol evapora
Pro céu vai embora, virar nuvens de algodão
Gotas de água da chuva
Alegre arco-íris, sobre a plantação”
Lenhadores que envergam ternos caros, dirigem camionetes que lembram astronaves, colecionam fuzis e pistolas Glock, acumulam plantações, bois e pastos a perder de vista — abençoados pelo Senhor e animados pelo orgulho Sertanejo — dominam o Congresso Nacional.
Trump/Kamala têm em comum a determinação de perfurar a alma do planeta; planejam seccionar o último carnegão das profundezas para drenar seu ouro negro.
Na China, Xi quer ainda mais, muito mais.
“Águas que movem moinhos
São as mesmas águas que encharcam o chão
E sempre voltam humildes pro fundo da terra
Pro fundo da terraTerra! Planeta Água”
Sei.
*
Águas ainda movem moinhos?
Por onde andará a menina Greta, que sonhara se tornar uma Joana D’Arc da era digital?
Pobre manceba. Há fogueiras para todos; faltam mártires.
Nas redes a festa não para.
E, olhem lá fora, não veem? Há uma sabiá na choca, uma sapucaia rosa como um sonho, e no LinkeDisney um “Top Voice” nos incita a ser resilientes para reciclar as cinzas da Terra e criar um novo mundo de parcerias estratégicas e bons negócios em Marte.
*
Nessa bruta primavera, me tornei um nostálgicos do céu azulejado (Djavan) e da assombrosa noite estrelada que um dia posou para Van Gogh — a mais memorável das noites havidas no Universo — e não menos nostálgico da lona celestial que reveste o “Terraço Café à Noite”.
Não há aurora nem crepúsculo.
A luz pálida que banha todas as coisas é enjoativa e pegajosa.
Com Abel Silva e Fagner,
“Eu não queria
A vida desse jeito
Meu olho armando um bote sem futuro
Fumaça”
Ninguém, de modo geral, queria.
*
Escrever a coluna passada quase me mata de ressaca, seu moço.
Que Náusea, seu Sartre.
Morri um pouco e demorei mais que de hábito a voltar a mexer com texto.
Também fui parar no hospital, na quarta-feira, adoecido.
Havia tomado uma meia tonelada de fumaça, poeira e pó, tudo engolido com uns cem litros d’água, conforme insistente recomendação.
Me atendeu um otorrino na meia idade, óculos grossos, a cara do Zé Vasconcellos.
Médicos adoram, não é de hoje, jogar conversa fora com seus pacientes.
Mas nesses últimos anos deram de se agregar em juntas para diagnosticar e remediar os males do país, cada colega mais doutamente arrazoado que outro, ciência à parte; muitos se mantiveram na vibe.
Este, logo vi, era um radical do individualismo heroico, escola Ayn Rand.
A anamnese mal começava, eu declinava minha profissão, suas contingências e tal, e ele me corta.
Num saltito dialogal com pirueta, passa a louvar as maravilhas da inteligência artificial.
O homem é um entusiasta do progresso, venha de onde vier, seja como for. Ele pronuncia o vocábulo com doçura, quase com tesão: pro-gres-so.
Asseverou que apenas os melhores em seus campos — jornalismo, medicina, engenharia, direito, tinturaria — como também operários braçais, vão sobreviver ao advento da IA. Para essa gente — diagnosticou, — a vida vai melhorar, já está melhor, facilitada. Quem estiver no meio, ele conclui num um meio sorriso, vai se foder (sic).
Pesquei emojis no ar.
Logo, dei gratia, ele me manda ao tomógrafo; me enquadram na horizontal e escaneiam minha cara.
Portava uma sinusite bem-criada, logo um receituário em duas páginas.
Em casa, vejo as tais fotografias, isto é, as imagens do exame em alta definição; a nitidez dava medo. Santa tecnologia.
Vi minha caveira antecipada e o que parecia meu retrato descarnado em 3D, como que derivado de uma máscara mortuária.
Já com uma primeira carga de antibióticos no bucho, na quinta-feira, pouco depois do meio-dia, honrei meu compromisso de despachar a Escrevidas.
Dia duro.
Não conseguira conciliar o sono na noite anterior. Era uma casquinha, um caco velho.
Bem a newsletter ganhava o mundo, eu pegava meu trem rumo à familiar estaçãozinha no inferno.
E me consolava com o Sérgio Sampaio; cantarolava:
“Eu tô doente do peito
Eu tô doente do coração
A minha cama já virou leito
Disseram que eu perdi a razão”
Mas nem tudo estava perdido.
De quinta pra sexta, graça a um emoliente da farmácia espiritual, dormi como um anjo velho.
Acordei ressurrecto.
Há séculos não sentia um bem-estar assim, pleno de paz e contentamento.
Desconfiava.
Sempre se tem, eu sempre tive, um pé atrás nessa hora, mas disfrutava.
*
Podia cogitar uma conspiração do bem, até crer que ia chover, o que viesse.
Chover, choveu, no Belo, sábado à noitinha: contei 15 pingos ao longo de uns cem metros percorridos. Não farão falta a algum meteorologista?
Mas saiu na sexta-feira, isso muito me alegrou, o terceiro episódio da série “A Longa Arte de Tom Jobim”, que vi quase às lágrimas, você sabe, as tais montanhas russas.
Arthur Nestrovski, ao lado de Paulinha Morelenbaum, cuja voz é uma uva, disseca a construção harmônica jobiniana em canções da Bossa Nova como “Desafinado”, “Samba de uma Nota Só” e “Garota de Ipanema”.
Luxuoso masterclass de 22 minutos.
*
Domingo, meio-dia.
Saio a um mercado próximo, atrasado com a tramitação do almoço.
Ao dobrar a esquina deparo a imagem bem viva e vertical do Cristo Morto de Mantegna, um quadro que pude ver algumas vezes na Pinacoteca de Brera, em Milão, onde quero regressar antes de “bater a alcatra na terra ingrata” (acabo de aprender isso no Houaiss; o Houaiss é meu vício).
Mas não: uma jovem, nos seus 35 anos, saía do laboratório de análises clínicas. Lívida, lívida, lívida e serena. Ela mantinha o braço esquerdo bem estendido, a mão direita ainda pressionava um algodão para deter o sangue; o rosto, dolorido e piedoso, inclinava-se para trás, rebaixado à esquerda, redentor.
Faz tempos passei a ver quadros reencarnados. A experiência não é má.
*
A mulher que representava o Cristo Morto me lembrou também o que Paulo Leminski (1944-1989) recitou, Itamar Assunção (1949-2003) cantou, Zélia Duncan repetiu para vocês e o Escrevidas vai lembrar agora:
“Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Andasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra”
Documental
Lunik 9
“Poetas, seresteiros, namorados, correi/ É chegada a hora de escrever e cantar/ Talvez as derradeiras noites de luar”: versos de “Lunik 9”, canção de Gilberto Gil gravada por Elis Regina, também por Os Cariocas, em 1966, e pelo próprio compositor no ano seguinte.
Zé Vasconcellos
José Thomaz da Cunha Vasconcellos Neto (1926-2011) foi um humorista, ator, diretor, produtor, dublador, radialista e compositor brasileiro, pioneiro no país em comédia stand up. Fez o primeiro Palhaço Bozo do Brasil, em 1954. Participou inesquecivelmente da "Escolinha do Professor Raimundo", de Chico Anysio, no papel de Ruy Barbosa Sá-Silva. [Com Wikipédia]
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