Propriamente, eu sou Durango Kid
Escrever nunca foi tão fácil com a inteligência artificial, e nunca foi tão necessário escrever por escrever, por amor ao idioma
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Domingo, dia 23, sairá, cerca de meia hora depois do Sol, o sexto capítulo do “Réquiem do Boi - Memórias Melódicas”. Chega-se já à metade do desfile.
ENSAIO DE CAPA
Para Francisco de Morais Mendes, grande contista
Topei com esta citação do escritor francês André Gide (1869-1951):
“Todas as coisas já foram ditas. Mas como ninguém está ouvindo, você sempre tem que começar de novo.”
Se isso era certo no tempo de Gide, hoje, creio, é ainda mais.
O nível de ruído atual é assombroso e a taxa de esquecimento, absurda.
Ruído tanto é poluição sonora como obstáculo ao entendimento, dito grosseiramente, na teoria da comunicação.
Taxa de esquecimento é como chamo a velocidade com que apagamos coisas dos sentidos, inclusive memórias que podiam ter se assentado em nosso ser e enriquecido relações afetivas e sociais.
Essas memórias se tornariam valiosas na vida estendida — dádiva da nossa era. Esquecer menos, estimo, importaria para a tão publicitária “qualidade de vida”.
E também, por certo, importaria para mitigar a sensação de que somos levados pelos acontecimentos, como álbuns de fotografias na enxurrada.
Claro que para a taxa de ruído concorre a oferta de estímulos, sons, imagens e textos — a maior da história, obviamente — da era digital.
A expressão “jogar conversa fora” ganhou conotações inesperadas e bizarras com os novos meios instantâneos de comunicação.
Nunca foi tão fácil — e banal — escrever.
Mas, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil falar e escrever com atenção, precisão, compromisso, respeito — significativamente — também por amor ao idioma de Machado e Rosa, hoje tão apequenado.
Pode-se ter a impressão de que tudo já foi dito, logo devemos nos repetir.
A inteligência artificial se adianta a cada palavra que digitamos, chatbots redigem qualquer coisa que ordenarmos; também podem simular falas e diálogos.
Como os robôs do Word, Google etc., transformam e padronizam o idioma em estruturas burocráticas, meio cartoriais.
Textos saem sem sabor, cor ou perfume mas, claro, facilita a vida de muita gente. Ganha-se tempo.
Entretanto, é urgente que digamos o que temos pra dizer, profundamente.
Botei aqui outro dia um enunciado de Muniz Sodré: “No deserto moral do digitalismo, impera a lei dos números. Cem vale menos que mil, que vale menos que um milhão...”.
Mas o deserto não é propriamente moral.
É antes estatístico, como um areal sem começo nem fim.
Na internet, estamos sitiados por informação (desinformação e outros ruídos) e propaganda.
O cerco cresce como dunas colossais formadas pela ventania, como galáxias que se afastam aceleradas rumo ao esfriamento final.
Só recebe atenção no deserto o que emerge das montanhas de granículos e consegue se destacar, meio como os “vermes da areia” do filme “Duna”, os Shai-Hulud.
Precisa ter brilho e tamanho para ser percebido mais facilmente nas dunas algorítmicas, como calhau, dejeto ou escória, por exemplo.
Tamanho (número de vendas, visualizações) e brilho (engajamento e fervor do público consumidor, pra não dizer devorador) estão na raiz da indústria cultural, como da civilização do espetáculo, como das redes sociais:
— para onde se queira olhar, como se queira chamar o fenômeno.
A maioria das pessoas não está interessada na ordem do sensível mas na distração, no entretenimento ligeiro, em sentir-se parte do fluxo, mais um nó na grande rede virtual.
Isso reforça a homogeneização e a horizontalização do conhecimento, tudo se equipara e vale o mesmo, seja a palavra de um PhD ou a desconversa de um influenciador no Youtube.
Nunca fomos tão individualistas e nunca fomos tão iguais.
A margem de previsibilidade e repetição de textos, falas e atitudes é desoladora.
O genial Chacrinha (José Abelardo Barbosa de Medeiros, 1917-1988) soltava seu famoso bordão: “Quem não se comunica se trumbica”.
Mas de vez em quando o Velho Guerreiro tacava um bacalhau na plateia e chamava os Titãs pra cantar “Sonífera Ilha”.
Você consegue se lembrar da última vez que se surpreendeu ou se encantou por deparar algo realmente original e desconcertante?
Observe a formulação de textos nos chats de inteligência artificial. Esses sistemas parecem ter quebrado toda a codificação da linguagem humana.
Observe com mais cuidado e verá que as engenhocas algorítmicas, programadas para aprender, estão longe de se expressar, pensar ou criar qualquer coisa que pulse e vibre, que seja capaz de abrir algum apetite estético.
Passado o apelo da novidade se reduzem ao que são, máquinas, ou engenhocas vampirescas e previsíveis, a despeito de todo encanto e medo que despertam.
Abarcam o mundo porque satisfazem a realidade, cumprem expectativas do mundo pragmático e elevam a produtividade na economia.
Mas esse é o mundo estruturado à imagem e semelhança dos criadores bi ou trilionários do Vale do Silício.
Esse é o mundo que cabe na inteligência artificial.
Experimente “comandar” uma dessas engenhocas para escrever algo assim (tiro anotações do caderninho que levo na bolsa):
“Sonhou em se vestir com a tule da noite e moldar-se àquele prenúncio de inverno”.
“Supôs renascer ao ouvir Elis cantar Chovendo na Roseira.”
“Manchas de verde púrpura e rosamarelas saltam da luz a incidir num vaso de cróton.”
Pois mais que alguém seja criativo ao formular comandos (“prompts”), dificilmente obterá coisa do gênero do Gemini (Google) ou do chat GPT 4o (OpenAI).
Esses sistemas podem, sim, simular o estilo de determinado poeta ou escritor mas jamais parir o inesperado, como o artista que dá à luz o novo.
*
É certo que o romantismo, faz tempo, hein?, foi pra cucuia.
Na cucuia também estão, banidos, o humanismo e as velhas ideias de universalismo e crença de que possuímos igualmente uma natureza humana.
Não há vida viável fora do tribalismo identitário, eu sei, sabemos.
Melhor deixar isso pra lá, ainda que essa ideologia defina a pauta cultural hegemônica.
Mas ponhamos isso de lado.
Para por isso de lado, preciso antes dizer com todas as letras: quem queira achar uma essência humana ou essência alguma no próprio gênero é livre para isso.
Agora, eu não me sinto pertencer a tribo identitária alguma e não quero que me enquadrem neste ou naquele gênero; nesta ou naquela tribo; neste ou naquele bloco.
Seguirei até o fim como um “fragmento qualquer da criação”, no dizer de Santo Agostinho, pó de estrelas recomposto como leite em pó e sorteado para a vida efêmera.
Não perco tempo em lastimar meu descaminho no deserto.
Vivo a sedução da luz.
*
Ademais, quer saber?
Aos diabos se
...acabou nosso carnaval e ninguém ouve cantar canções...
Como na esquecidinha “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, de Carlos Lyra (1923-2023) e Vinicius de Morais (1913-1980), faixa que abre o álbum “Nara” (1964):
“[…] no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
E preciso cantar e alegrar a cidade”
Para alegrar a cidade é bom fugir da ordem geral, dos cordões multitudinários, às vezes recusar o facinho e renegar o estereótipo automático e vácuo.
A alegria deve ser memorável pra ser alegria literal.
Temos de nos esforçar um pouco pra enxergar reflexos áureos no lusco-fusco e buscar a fonte desses reflexos.
É o caso, claro, de suportar alguma solidão até que se faça o novo na conversa geral, além da tagarelice ambiente.
A propósito, as mudanças climáticas devem ter algo a ver com a tagarelice.
É assistir a uma resenha esportiva com seus gêiseres de arenga, um programa como o “Fantástico”, um telejornal, ou correr o olho pela contrafação online da velha imprensa pra ter certeza disso.
“Namoro de Gisele Bündchen teria terminado”, informava diligentemente “O Globo” dia desses.
Depois falam que eu exagero.
Será possível escapar das redes microscópicas do banal sem se internar num mosteiro ou sanatório?
Digo, defendo, que temos de escapar do mosteiro e do sanatório.
Resgatar essa esperança de liberdade vale a vida, por efêmera que seja.
Países onde não nascem mais crianças;
O desmatamento e o aquecimento geral;
A carência de saneamento básico e educação pública qualificada;
As interseções entre política e delinquência;
A cidadania fraturada:
— eis algumas questões decisivas que precisam ser enfrentadas. Valem a efemeridade da vida.
Mas:
A alegria com a criança que vai nascer;
O voo do pássaro;
A flor cor de abóbora da espatódea (também tulipa-da-áfrica) que no auge fere o ar o olhar;
A vacina pronta que salva tantos semelhantes;
A decretação da paz;
O primeiro beijo dos meninos e meninas;
O baque de um verso de Pessoa;
O silêncio entre compassos de Jobim:
— eis algumas questões decisivas. Valem a efemeridade da vida.
O mundo vai longe de acabar; um dia, claro, acaba; mas nosso mundo não tem que acabar antes da hora.
Mas, por favor, quando vier o fim do mundo, nada das melosidades de apresentadores de TV com carinha de anjos autocriados.
*
Temos que dar um jeito de retomar a conversa no sentido de conviver e frequentar — na raiz desse vocábulo, e de rejeitar o absurdo;
Falta-nos, neste instante, um pouco de concentração pra discordar em voz baixa, depois de ouvir com atenção o que outro tem a dizer.
Tudo que a vida em comum não quer é mais a tal “assertividade” dos amansadores de feras do mundo corporativo.
Melhor acreditar que não vão prosperar essas figuras quiméricas que assombram a humanidade desde a noite americana, desde a névoa do Prata, desde as bolhas de enxofre soltas do inferno pra empestear o Velho Mundo.
*
E se prosperar tudo isso?
E se os mananciais de negacionismo, notícias falsas, racismo, xenofobia, misoginia, LGBTfobia e antivacinismo prosperam a ponto de inundar tudo?
E se o BBB mantém seus níveis de audiência por mais cem anos?
Bom, então será o caso de tocar o tango argentino, como aprendemos na lição inesquecível do “Pneumotórax” de mestre Manuel Bandeira (1886-1968).
É o lenitivo que me ocorreria:
“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”
Também pode-se encher a cara.
Por mais que isso venha a nos matar um dia, ao menos saberemos que honramos a causa humana.
Mas encher a cara com método. Nada de perder os eixos e sair de órbita antes do gran finale.
Antes de dizer, um minuto para o fim do mundo, uns versos da “Ode a um Rouxinol” de John Keats (1795-1921), (ou os versos de seu querer).
Pode ser na tradução de Augusto de Campos (“Vialinguagem”, Companhia das Letras, 1987), pode ser esta quinta estrofe, na qual Scott Francis Fitzgerald (1896-1940) arranjou o título bacana de sua obra mais conhecida, o romance “Suave É a Noite”:
“Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,
Não em carro de Baco e guarda de leopardos,
Antes, nas asas invisíveis da Poesia,
Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;
Já estou contigo! suave é a noite linda,
Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz
Com a legião de suas Fadas estelares,
Mas aqui não há luz,
Salvo a que o céu por entre as brisas brinda
Em meio à sombra verde e ao musgo dos lugares.”
*
Agora, se as assombrações não prosperam (este Escrevidas quer porque quer ter um final feliz), de minha parte vou festejar com “Durango Kid”, de Toninho Horta e Fernando Brant (1946-2015).
Citei essa canção na última newsletter, ao falar do álbum “Vendedor de Ilusões”, e não parei de ouvi-la.
Brant celebra a aparição de “um novo jornal” (ou de uma nova canção?) bem no pico da ditadura, e compara esse jornal, ou o tribuno que nele escreve, ao caubói do bang-bang americano.
O jornal foi sim símbolo de resistência e redenção humanitária. Informar, opinar, clamar nas terras selvagens da injustiça (pra tudo terminar na “realidade alternativa”).
Lançado nos Estado Unidos nos anos 1940 e no Brasil, com um baita sucesso, duas décadas mais tarde, Durango Kid, vivido pelo ator Charles Starrett (1903 ou 1904-1986), era um paladino da justiça.
O seriado grudou no imaginário de meninos e adolescentes que cresceram na década de 1960.
Durango aparece em outras canções, como “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas (1946-1989) e Claudio Roberto (1952-2022), na marcha "Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua", de Sérgio Sampaio (1947-1994), e até no rock “Infância Careta”, de Xororó, Fátima Leão e Joel Marques, com a dupla Sandy & Junior.
A melodia composta por Horta é íntima e insinuante.
Recebeu versões jaszísticas de André Mehmari, Toninho Horta e do americano Mark Egan.
“Propriamente eu sou Durango Kid
Eu vim trazer, eu vim mostrar
Novo jornal, novo sorriso
Novo jornal, novo sorriso
Propriamente dizer o só exato
Pois hoje eu sou o que eu fui
Não desmenti o meu passado
Esse jornal é o meu revólver
Esse jornal é o meu sorriso”
Tem aí, na canção, todo o substrato do imaginário de uma época, a gema de um sonho, uma razão de viver.
DESAFORISMOS
O homem mais idoso vê a mim e minha mulher, mãos dadas na calçada estreita. Ele esboça um sorriso e, antes de nós, desvia-se pra gente passar.
Seu gesto é tão simpático e comovente que — depois de dias de estômago embrulhado com nossos congressistas de fino trato — finalmente limpo meus olhos.
*
Redes sociais fazem mal à saúde. Eis uma realidade gritante que, grandemente, é deixada de lado. Parece, como as notícias fraudulentas, já ter sido incorporada à “natureza”, como uma espécie de ônus incontornável do “progresso”.
O Dr. Vivek H. Murthy, conselheiro-mor de saúde do governo americano, deu que falar com artigo no “The New York Times” para defender a aplicação de um alerta sanitário (warning label), como os dos maços de cigarro, nas plataformas de redes sociais.
Um alerta dirigido aos pais os transtornos (ansiedade e depressão) de crianças e adolescentes dependentes dessas viciantes drogas algorítmicas.
Os bilionários do Vale do Silício e de Wall Street se consideram pontas-de-lança do futuro, vanguarda do capitalismo, daí tanta bazofia sobre “liberdade de expressão”.
Assim, mantêm ordenado e funcional o imenso formigueiro dentro do qual acordamos de sonhos intranquilos, do sono da civilização, metamorfoseados em laboriosos insetos.
*
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!