Quatro Canções Singelas
Ramil e a estrela, Chico e a dor em dó menor, o ombrinho carinhoso de Nara, uma cabocla centenária e Guignard: torturado, tutorado e genial
A poesia cantada, com acompanhamento de flauta, viola ou alaúde, tem uns mil anos.
Devemos a união entre poesia e música aos trovadores provençais. Aprendemos na escola algo sobre cantigas de amor e amigo, ou de escárnio e maldizer, que tascavam a sociedade feudal.
Compositores, poetas e letristas são ramos do baobá semeado por gente como Guilhem de Peitieu (1071-1126), Giraut de Bornelh (1138-1215) e Arnaut Daniel (1180-1200), com obras incluídas na Playlist desta edição.
Mil anos e tal, quando se fala em morte da canção, nunca soube ou saberei o que é viver sem música.
A canção é o “que de mais lindo há no mundo”, disse Ciro Monteiro, e um universo sem fim.
Me quedo neste Escrevidas a dois de seus atributos, delicadeza e singeleza, esta ainda que aparente.
A simplicidade, no ponto de chegada, muitas vezes encobre caminhos intricados de erudição, e a obra de Tom Jobim é a melhor expressão dessa jornada criativa.
Singeleza e delicadeza andam deslocadas da nossa época, eu sei; estão fora da ordem mundial.
Ainda leva uns anos, creio, para ensinarem um robô a arrepiar-se, a “tener los pelos en punta”, e exalar contentamento ao ouvir uma bela melodia.
Vão chegar lá, claro, e desse dia em diante talvez tenhamos quem ou o que se encante por nós diante da beleza, que regule nossas emoções desviantes da “normalidade”.
Quem sabe não será um desses implantes cerebrais que o Elon Musk quer nos enfiar na cuca, quer nos inculcar como a última palavra do salvacionismo tecnológico.
Estaremos livres da melancolia, da depressão e do tédio. Seremos completos e felizes para sempre. Toda forma artística terá se tornado banal e supérflua.
Mas muita calma nessa hora.
Grandes artistas e verdadeiros inventores continuam a buscar uma expressão singela e delicada no trabalho criativo.
Aspiram à beleza e à concentração emocional que penetra a sensibilidade do ouvinte ou, no giro da quadra final do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa,
“E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.”
Aí vão quatro casos de canções que logram essa proeza.
1
Como quem corre o dial analógico de um velho rádio a buscar o que ouvir de bom, pego uma regravação de “Estrela, Estrela” por seu autor, Vitor Ramil, de 2013, do extraordinário CD duplo “Foi no Mês que Vem”, a mesma versão da novela “Amor Perfeito”.
Antes, a canção já podia ser apreciada no não menos extraordinário CD “Tambong” (2000), com voz e violão de Ramil e o argentino Petro Aznar ao piano. Mas sua história não começava aí.
Vinha do primeiro disco solo do gaúcho, então com 18 anos, batizado justamente “Estrela, Estrela”, em 1981.
Nesse ano, a composição também foi registrada por Gal Costa, no LP “Fantasia”, e saiu, com a estranha introdução de uma fanfarra de sopros meio circense, no segundo álbum da dupla Kleiton & Kledir (Ramil é o mais jovem dos três irmãos).
Finalmente, em 2013, “Estrela, Estrela” entrou no repertório de “Casa Ramil”, registro ao vivo do show reunindo duas gerações do clã de pelotas, lançado nas plataformas de streaming.
Para constar, há também uma gravação de Milton Nascimento, no álbum “…E a Gente Sonhando” (2010), que é para ser esquecida.
Mas eu falava de minha perfeita sintonia com a gravação de 2013, a mais bela dessa microssaga de “Estrela, Estrela”.
Ramil convidou o violonista Carlos Moscardini — outro argentino, reverenciado solista — para colorir sua bela voz e os acordes de base do seu violão.
Deu-se entre os dois músicos uma afinidade luminosa. A composição, de certa maneira, foi reinventada.
Os “comentários” do violão de Moscardini à linha melódica e à base harmônica, com a clareza de seu timbre, acentuaram o caráter e a identidade da canção, que não podia ser mais delicada e singela.
Os dois músicos tornaram, por assim dizer, mais verossímil o diálogo estelar que a letra imagina, assim:
“Estrela, estrela
Como ser assim
Tão só, tão só
E nunca sofrer
Brilhar, brilhar
Quase sem querer
Deixar, deixar
Ser o que se é
No corpo nu
Da constelação
Estás, estás
Sobre uma das mãos
E vais e vens
Como um lampião
Ao vento frio
De um lugar qualquer
É bom saber
Que és parte de mim
Assim como és
Parte das manhãs
Melhor, melhor
É poder gozar
Da paz, da paz
Que trazes aqui (...)Eu canto e sei
Que também me vês
Aqui, aqui
Com essa canção.”
2
Era “Vida” e eu tinha 19 anos.
Chico Buarque lançava um novo LP e isso era um acontecimento.
“Qualquer Canção”, a faixa que mais me tocou, e a que mais toquei do vinil, primeira do lado B, nem foi o maior sucesso do disco. Começa assim,
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