Duas palavrinhas
“O melhor o tempo esconde/ Longe muito longe/ Mas bem dentro aqui...”
Caetano Veloso – “Cinema Transcendental”
Cara leitora, caro leitor,
Esses pequenos contos, que a partir de amanhã começam a chegar a você, são carne de minha carne.
Eram um mundo que eu guardava, preso entre a memória e o coração, e que em certa hora tive de libertar e reinventar.
Porque nossas memórias são sempre reinventadas, ainda mais quando escritas.
Tiveram três vidas, essas histórias.
A primeira no formato de crônicas escritas para “O Tempo”, quando eu ainda editava o “Magazine”, suplemento de cultura desse periódico, coisa de uns vinte anos atrás.
Passada uma década, aquelas crônicas, que eram lindamente ilustradas pelo amigo Fernando Fiuza (1953-2009), foram reelaboradas e tomaram o feitio de um original literário em busca de editor. Nada feito.
Dois ou três capítulos dessa segunda vida tiveram versões publicadas em blogs já perdidos no espaço; um deles, “A Hora Azul”, baixou na “Jurupoca”, canto que mantive durante a pandemia.
Mas os textos não me davam sossego. Guardados nas tais de nuvens, relampejavam, enchiam o céu de cinzas e não choviam.
Até que, ano passado, resgatei aquele original, congelado em algum cumulonimbus, e me meti a remexer em tudo, cada linha, cada evocação, o que, confesso, doeu bastante.
Não sei bem mais o que são agora, meus continhos.
Se ainda são fieis ao que eram ou deviam ser? Pode que sim.
Seja o que forem, alcançaram a paz de uma conclusão, depois de tantas reescritas, que são reescre-vidas.
O que tinham ser, estão. Se prestam ou não, é com você.
Bem ou mal vão nesse “Réquiem do Boi - Memórias Melódicas”, que amanhã começo a publicar, exclusivamente para os leitores do Escrevidas, só pra você.
A cada domingo sairá um capítulo, no total de treze, mais ou menos como na época dos folhetins, a ficção seriada que, creia-me, fazia a fortuna de autores e jornais, sobretudo no século 19.
O primeiro capítulo chama-se “Itália”.
Os três primeiros serão abertos, depois passam a ser enviados apenas para as subscrições pagas.
Uma apresentação
"Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava – cré que o caroá levanta flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.”
Guimarães Rosa — “Grande Sertão: Veredas”
Os contos deste “Réquiem do Boi – Memórias Melódicas” podem ser lidos como tais — relatos breves — mas também pelo gradiente do romance ou da novela.
O “livro” bordeja a autoficção, nesse caso concebida quando ainda não se falava nisso, autoficção, que a rigor é uma autobiografia ficcional, memória e invenção aglutinadas.
Digo que apenas bordejam porque o narrador ou autor/narrador não é o centro de tudo, há muita vida, outras vidas, em torno dele ou deles, que vão se impor.
A maior parte das 13 histórias transcorre em Senhora de Primavera, ou apenas Primavera, pequena cidade perdida no interior do Brasil na segunda metade dos anos 1970, e envolve personagens de uma mesma “patota” adolescente.
“Adolescência”, nesse tempo e lugar, tinha pouco a ver com a valoração social, cultural e higiênica que passou a ter esse rito da mocidade.
O que nos dias atuais é etiquetado como “adolescência” era uma transição mais breve e divisa com obrigações familiares e sociais “adultas”.
Mas também com distrações e prazeres que se confundiam na iniciação da “vida adulta”.
Sem o amparo da educação e os amortecedores simbólicos da cultura, rapazes e moças da gente pobre ou remediada ao menos podiam contar com a diversão musical.
Sobretudo com a canção popular — que se estendia na sua era de ouro de diversidade, explosão criativa e proveito da indústria do disco, iniciada décadas antes.
No universo interiorano, a música também era uma experiência gregária que demarcava a convivência e a sociabilidade, além, claro, de matizar a experiência individual.
Vem daí o protagonismo da música no “Réquiem do Boi – Memórias Melódicas”.
Canções são parte do desenrolar e mesmo da estruturação de histórias chamadas “Melopeia”, “Partita”, “Noturno”, “O Disco da Samambaia”, “Sábado (choro-canção)” ou “Macca contra John”
Nelas, bailes, discos e carnaval pretextam ou conduzem circunstâncias do enredo.
No “Réquiem do Boi”, a vida — ou o gozo da vida como gerador de memórias profundas — “d’A Turma” — grafada assim no livro que era pra ser — transcorre em ritos de férias escolares e, no caso de Senhora da Primavera, nos desfiles do Boi da Manta — folia de rua levada toda semana no mês anterior ao Carnaval e culminada na sexta-feira, véspera de Momo, com o “Enterro do Boi”.
O “Boi” é uma espécie de metrônomo a marcar o pulso de Primavera — representada na convivência de jovens pressionados e encantados, cheios de acne, fantasias e contorções do sexo.
É verdade que desfrutavam da companheirada e duma suave elasticidade do tempo — em paralelo com a vida da cidade mesma e sua humanidade.
Já relatos como “Geninho” e “Vadinho” expõem uma face de indiferença e crueldade com o que não se integrava à esfera do “normal” nesse tempo e lugar.
No primeiro deles, um rapaz empenha a vida pra passar no vestibular de medicina;
O segundo ilumina a existência de um membro d’A Turma que era hábil em se mimetizar pra encobrir quem era, ou podia ser, e assim disfarçar seus desejos.
E havia margens terceiras em Senhora de Primavera, frequentadas pelo narrador em histórias com um colorido de banalidade, espanto e negror.
O narrador é um moço pra quem a genuína alegria que desfrutava com amigos e a festa típica da idade por vezes alcançava, solitariamente, o nível do sublime, estado que despertava uma saudade precoce do que mal acabara de viver, ou ainda estava por viver.
Tais margens se mostram em “Disco da Samambaia” — conto motivado pelo lançamento de um LP que tanto abre como fecha horizontes para o narrador, e no “Réquiem o Boi”, história nuclear na concepção dos textos.
O cerce disso, desse contraste entre contentamento e saudade prematura também se revela em “A Hora Azul”, que se passa num plano futuro mas que se intercala e compõe com as demais narrativas.
Os relatos tratam amiúde de encontros ou “sessões” “d’A Turma”.
Os personagens são nomeados tal como se tratavam entre si — apenas por Mi, Quel, Saraca, Vadinho, Fau, Lamaior, Lez, Bê, Claw, Cacau ou Anaflor.
Talvez, à exceção dos intermédios “A Hora Azul” e “Melopeia”, convirjam todos, ou fluam, conforme uma das leituras sugeridas no “Réquiem”, para o último desfile, o “enterro” cerimonial do Boi da Manta.
O “Réquiem do Boi”, que também nomeia a mais longa das histórias, retrata um mergulho no interior da festa e no próprio gozo carnavalesco que explode nas ruas, em uma noite no tempo, em Primavera.
A energia da farra entra em curto e causa um choque — o prenúncio do fim de um ciclo, um fim entre tantos fins que acabam no fim final.
A folia deixa um saldo e uma conta — quem sabe da fruição cadenciada das horas — a ser apresentada mais tarde, a cobrar revisitação e registro.
Uma boa leitura.
Salve, saravá e uma abraçaço!
Escrevidas é uma pizza de palavras — metade ensaio, metade crônica.
A fornada sai às quintas-feiras antes do meio-dia ou a qualquer hora em edição extraordinária.
A farinha é do moinho do jornalismo, em função desde 1986.
Nos ingredientes vão música, literatura, cinema, TV, arte, ciência, ideias e um pingo de poesia — com o tempero do inesperado.
Se você é assinante gratuito e tem meios, considere pagar pela subscrição.