Um cabra da peste e um cabrón
Desigualdades à parte, Byung-Chul Han e eu temos parecenças: curtimos música e plantas e fugimos da “infomania”
O Escrevidas subsiste com apoio de seus leitores. Se você é assinante gratuito e tem meios, considere pagar pela subscrição.
Domingo, dia 30, sairá, às 7h02m, o sétimo capítulo do “Réquiem do Boi - Memórias Melódicas”.
Feliz é o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.
Como autor popular de grande sucesso, crítico da “infomania” digital, ganha o burro do cobre.
Rema na contracorrente do mundo apressurado regido pelo celular, aparelho que define como “instrumento de dominação” — ele até tem um mas não liga muito.
O cabra da peste é uma voz desconectada do bloco dos contentes, a clamar na seca severa do humanismo e na aridez dos vales de silício.
Byung-Chul quase não sai das duas casas que possui em Berlim, onde pratica jardinagem e toca piano — aprendeu sozinho, ao estudar as “Variações Goldberg”, de Bach.
Numa das casas tem três instrumentos, um Steinway & Sons e dois Blüthner.
Todos os dias repassa a breve série das “Cenas Infantis”, de Robert Schumann (1810-1856), “para não adoecer”, inclusive quando viaja, e por isso viaja pouco.
Como o filósofo romeno Emil Cioran, Byung-Chul é um passeante de cemitérios.
Depois de ler, ano passado, sobre a vida à parte de Byung-Chul, fui ouvir as “Cenas Infantis”. As treze peças têm nomes como “A sonhar”, “O cavaleiro do cavalo de pau” e “Cabra-cega”.
Entre vários intérpretes que toquei, vi que ninguém melhor que a portuguesa Maria João Pires alcançava a leveza profunda dessa obra.
Então entendi o fascínio de Byung-Chul.
Ouvir diariamente essas “Kinderszenen” (no alemão original) equivale à celebração de uma eucaristia do cotidiano.
Longe de ter o burro na sombra, como Byung-Chul, também me deixei enraizar à música e às árvores, até se tornarem partes de mim.
Há anos, me autocancelei das redes sociais mais fulanizadas, e me afasto o quanto possa do móvel, ainda que não tenha mais um telefone fixo.
Nada disso, claro, ajuda a impulsionar a popularidade deste Escrevidas, que depende de conexões e tráfego para atrair novos leitores.
Mas é a vida, e estou contente com as leitoras e leitores que me chegam.
Ainda hoje considero uma proeza digitar mil mensagens no celular enquanto se come ou namora num bar. Como no poema de Vinicius de Morais, meu tempo é quando.
*
Uma maneira que encontrei de jardinar é fazer essas imagens que trago aqui desde a última edição, com a série “Cróton” (são boas de ver em telas maiores, como as de PCs e notebooks. O celular amesquinha imagem e imaginação).
Pobre amador apaixonado, faço questão de manter as imperfeições de fundo deixadas pelo algoritmo.
Ajo assim.
Toda manhã visito vaso a vaso;
Ando na Mata das Borboletas;
Fotografo plantas ou detalhes delas que me atraem, ao sabor da luz do dia, ao sabor dos meus — como não se diz mais — estados d’alma, no compasso das “intermitências do coração” (título de um ensaio de Marcel Proust);
Depois brinco um pouco com as fotos num editor de imagens básico.
Meu interesse são cores e formas — e como as formas ocupam o espaço, na infinita variação natural legada pela evolução.
Aprendo que árvores e plantas se revelam a um observador aplicado.
Com o tempo se distinguem ao olhar e deixam de ser manchas e tonalidades vegetais distribuídas no espaço urbano ou na paisagem campestre.
Nem é preciso dizer que esse aprendizado requer um pouco mais de calma, frase que entra só pra incensar a canção do Lenine (com Dudu Falcão); as canções referidas aqui, você já sabe, formam a playlist de cada edição.
Lenine é orquidófilo.
E Robert Menescal cultiva bromélias.
Em “Elis & Tom”, na bonita sequência já no fim da fita, Menescal, hoje aos 86 anos, elege duas espécimes de seu horto sob os signos da cantora e do maestro; é tocante.
Por falar nisso, Nando Reis compôs “Espatódea”, citada, árvore, não canção, na edição passada.
Aqui no Belo, essa espécie de origem africana está no finalzinho da floração.
Ruas e calçadas voltam à normalidade sem o desvio para o laranja avermelhado.
Mas estamos ao pé da estação de ipês; logo galantes porta-estandartes vestirão seu rosa habitual e aliviarão um pouco nosso “taedium vitae”.
*
Byung-Chul é um filósofo de sucesso, best-seller, menosprezado, é verdade, por guardiões do rigor filosófico, mas sua popularidade deve dizer algo sobre as novas formas de mal-estar da civilização.
A crítica que faz à ordem algorítmica (“No Enxame – Perspectivas do Digital”), à desregulação do trabalho, à “uberização” e à obsessão higiênica (“Sociedade do Cansaço”), a despersonalização dos objetos (“Não-coisas – Reviravoltas do Mundo da Vida) e a outras taras atuais, em outros livros, são um pequeno oásis no avassalador deserto das ideias em que caminhamos.
Os menos favorecidos — pela natureza ou sorte — na maratona darwiniana da vida tangida pelas Big Tech, gente dada a pensar diferente das grandes torcidas —falo na mocidade: minha geração, coitada, veio cedo demais ao mundo — tem a boa companhia dos ensaios de um filósofo de formação dura (alemã) e tutano a toda prova, inclusive para escrever de modo legível e comungar seus achados, que a meu ver são menos Filosofia, com “fê” grande, que crítica cultural.
A verdade é que Byung-Chul dá uma contribuição valiosa sobre questões ignoradas pela arte — a arte e seus rebanhos de cordeirinhos sacrificiais a tirar o pecado do mundo em jornais, livros, redes sociais e bienais.
Tudo é quase divertido, não fosse a tragédia adiada que se infiltra em cada um de nós.
*
Eu me pergunto sobre o abandono da rebeldia pela arte em geral, mas sobretudo pela literatura e a música, velhos refúgios das almas irrequietas.
Esse abandono ocorre quando tudo parece se conformar — em devidos nichos de mercado — à ordem do dia.
Em seu perfil de Leonard Cohen (1934-2016), o jornalista e escritor americano David Remnick (de quem falo mais ao pé) conta que o artista canadense, jovenzinho ainda, tinha uma ideia clara sobre com quem queria prosear.
Em carta a sua editora, Cohen estimava um público de “adolescentes inconformados, amantes da angústia em todos os graus, platônicos desiludidos, voyeurs de pornografia, monges punheteiros e papistas”.
O que será dessa gente toda que se perde no meio da grei, essa gente solitária?
Sim, a turma de Cohen não é mais a mesma. Adolescentes inconformados e amantes da angústia ainda deve haver por aí, assim como voyeurs e tal. Mas papistas?
Seja como for, os redutos agora são academias de ginástica, “barber shops”, lojas de tatuagem, lojas de “pets”, esfera “digital influencer” e os parques de diversões temáticos, como o desses imensos festivais de “rock” em que o público tem cada minuto planilhado em aplicativos.
Quando fogem aos ideias da época, rapazes podem se isolar em porões sombrios onde se metem em comunidades de jogos online, pornografia, misoginia, LGBTfobia e radicalismo, deu muito isso na “América”, na última década.
Não me levem a mal, falo de tendências.
Não faltam no mundo meninas e meninos solares, interessados em ler História, cultuar a natureza, cozinhar, ouvir música inventiva e descobrir novos mundos criativos refratados nos coletivos hegemônicos.
*
Mas divago. Retomo as plantinhas.
A lembrar o título de um programa, há anos exibido na TV holandesa, plantas e bosques são uma ponte entre o belo e a consolação, sobretudo pra quem cresceu no mato.
Acontece uma coisa interessante. A experiência estética pode vir da natureza ou nos levar de volta ao mato — e nisso, há séculos, reside certa cadência da arte e da humanidade.
Essa ideia se traduz, como murmulho de riachinho, na música de Tom Jobim (1927-1994).
Tom dizia: “Toda a minha obra é inspirada na Mata Atlântica”. A frase virou título de um livro, lançado em 2002, com fotos de sua segunda mulher, Ana Lontra, e textos seus.
Mar e monte — com o Jardim Botânico uma espécie de umbigo — são cenários de “A Luz de Tom” (2013), de Nelson Pereira dos Santos, que há tempos, com o aparelho de DVD de casa quebrado, eu não podia rever, e agora a Netflix me faz o favor de pôr na roda.
A vida de Tom é narrada através das memórias de suas “três mulheres” — a irmã Helena (Helena Isaura Brasileiro de Almeida Jobim – 1931-2015 — e que belo nome), a primeira esposa, Thereza Hermanny, e Ana Lontra.
O documentário, bem singelo perto do soberbo filme anterior de Nelson, “A Música Segundo Tom Jobim” (2012), é ancorado no livro biográfico de Helena, “Antônio Carlos Jobim, um Homem Iluminado”.
A narrativa, fluída e refrescante, ressalta o elo da invenção melódica e arquitetura harmônica jobinianas com os ritmos da natureza.
“Cai a Tarde”, “Dindi” (com Aloysio de Oliveira), “Matita Perê” (com Paulo César Pinheiro), “Águas de Março”, conta Thereza Hermanny no filme, foram algumas das músicas criadas por Tom na casinha da família no sítio Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, onde o casal se refugiava (destruída nas inundações de 2011 na região serrana do Rio).
Mas quem é Tom Jobim, afinal?
É parte da paisagem brasileira, é um bioma musical, e sua música é um descanso.
Sua música alça o voo do urubu e seu canto ao piano embala sonhos de amor-perfeito.
Pra lá de boa a entrevista de David Remnick, editor de longa data da revista “The New Yorker”, a Iker Seisdedos, do “El País”.
Remnick reúne em livro, agora em edição espanhola, seus perfis de ídolos da música pop anglófila, Cohen, Bruce Springsteen e Keith Richards incluídos.
Caroneio aqui em uma resposta de Remnick, ao ser indagado se a “The New Yorker” assinaria acordo de inteligência artificial com OpenAI.
Tal acerto permitirá, dito de maneira singela, que os robôs da OpenAI suguem legalmente os acervos da revista quase centenária para “treinar a máquina”.
“Não cabe a mim decidir isso. Eu acredito que já pegaram toda a informação que desejaram. É um escândalo. É o que fazem as empresas de tecnologias há 15 anos. Atuam com impunidade e fingem estar fazendo o bem porque [seus proprietários] vestem camisetas e comem comida macrobiótica. A injustiça e a desigualdade que hão inoculado em nossa sociedade não podem ser ignoradas por mais genial seja o iPhone.”
Remnick reconhece que há coisas novas e interessantes surgidas na esfera digital mas pergunta a seu entrevistador se “a gigantesca montanha de lixo da internet” pode substituir o jornalismo profissional, por mais que a “imprensa” cometa erros, inclusive alguns absurdos. Ele cita como exemplo o fato de o “The New York Times” ter ignorado o Holocausto.
*
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!