Um carango, um Iphone, uma bomba
O olhar e o desejo, "Oppenheimer" e a rosa com cirrose de Putin, "o aço do açúcar", "o mel da melodia" e o "Ão" do João
Camaradas,
Sintam-se em casa nesta nave à deriva entre nuvens de elétrons nas Galáxias de Gutemberg.
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Desço ao Parque Municipal, meio distraído, meio cansado, e bem ali na praça do Escoteiro, corner das avenidas Carandaí e Pasteur, eis a súbita floração rosa, como se uma estrela dessa cor baixasse à Terra ao meio-dia.
Era a copa de uma paineira atrevendo-se contra a normalidade.
Paro um instante, penso em sacar o celular mas desisto.
Quem sabe, me ocorre, não há de se reaprender a olhar? Olhar para levar à alma pelo filtro da existência, da essência, até diria, se alguma essência houver no ser, no viver. Só.
Olhar sem repartir, olhar por proveito do eu sem nós. Resistir ao arco reflexo, ao impulso neural do aplicativo e do algoritmo que de alguma forma já temos implantados no corpo.
Olhar como nossos ancestrais mais remotos gostavam de olhar, sem viés utilitário, olhar pelo encanto, uma surpresa, um pico de alegria da beleza.
*
Caminhava com fones de ouvido, um costume que já me incomoda um pouco, atrapalha às vezes, e do qual tento me livrar, ao menos um pouco.
Mas a playlist Rádio Escrevidas: 1001 Canções Brasileiras toca no aleatório Wilson Simonal (1938-2000) com seu canto meio falado em “Carango” (Carlos Imperial, Nonato Buzar).
Fez um baita sucesso em 1966 e além. No mesmo ano teve a gravação de Erasmo Carlos, mais tarde ótima versão de Samuel Rosa no álbum “O Baile do Simonal” (2009). Diz a letra:
“Copacabana, carro vai zarpar
Todo lubrificado pra não enguiçar
Roda tala larga genial
Botando minha banca muito naturalSimbora, um, dois, três
Camisa verde claro, calça santropê
E combinando com o carango, todo mundo vê
Ninguém sabe o duro que dei
Pra ter fon fon, trabalhei, trabalhei (…)
Depois das seis, tem que acender farol
Garota de menor não pode ser sem sol,
A Barra da Tijuca já michou
A onda agora é deixar cair no levadorSimbora, um, dois, três
Garota minissaia, essa onda é bem
E todo mundo no carango, não sobrou ninguém
Ninguém sabe o duro que dei (…)Mas em São Paulo, eu boto pra quebrar
Ah, eu pego o meu carango e vou pro Guarujá
Paro o carro frente pro mar
Barra limpa, bonequinha, chega mais pra cáSimbora, um, dois, três
Capota levantada pra ninguém nos ver
Um abraço e um beijinho, isso é que é viver
Ninguém sabe o duro que dei
Pra ter fon fon, trabalhei, trabalhei (…)
Uma calça “santropê” (Saint Tropez, de cintura baixa), um “carango” reluzente roda tala larga, quem sabe “envenenado”, cresciam olhos nas ruas, “todo mundo” via, bulia e batia com os desejos; eram signo de sucesso, inveja e, claro, conquista sexual, ao menos no imaginário masculino e caçador.
A indústria automotiva vinha se expandido no país e atiçava a libido da classe média, jovens, pais de família, solteirões.
O culto ao automóvel não passava despercebido aos críticos da cultura, aos artistas, que afinal são a “antena da raça”, dizia Ezra Pound.
Apenas três anos depois de Erasmo e Simonal, os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Kostenbader Valle lançavam o LP “Mustang Cor de Sangue”, nome da primeira faixa que se tornou um dos clássicos da grande dupla — e gravada no mesmo ano, quem diria, pelo próprio Simonal (Alegria, Alegria Vol. 3 - Ou Cada um Tem o Disco que Merece, 1969):
“A questão social
Industrial
Não permite e não quer
Que eu ande a pé
Na vitrine um Mustang
Cor de sangueTenho um novo ideal
Sexual
Abandono a mulher
Virgem no altar
Amo em ferro e sangue
Um Mustang
Cor de sangueNo farol vejo o seu olhar
Minha mão toca a direção
No painel eu vejo
O seu amor
E o meu corpo
Invade o interiorA questão social
Industrial
Não permite que eu
Seja fiel
Na vitrine um Corcel
Cor de mel” (…)
“Amo em ferro e em sangue/ um Mustang” é grande verso.
Tento atualizar “Carango” para os nossos dias, o equivalente atual a “ter fon fon”.
Mulheres deixaram de ser seduzíveis por carrões. Hoje elas próprias querem e podem ter os seus para seduzir.
Andamos um pouco contra o sexismo, nos costumes, na cultura moral — ou na moral da cultura, graças à luta da mulher e alguma reforma na educação dos meninos.
Mas o mundo gira e a publicidade — outra categoria, ainda que vicária, de “antena da raça” — atualiza o que tem de ser atualizado para manter o “estado da arte”, como ponta de lança do consumo e dos sonhos que é — ou até ser obrigada a se atualizar pela sociedade, como na propaganda de cigarros.
Atenta à pauta identitária, a indústria da propaganda já produz comerciais o mais inclusivos possível, um primor de adesão ao espírito do tempo.
Claro, desigualdade não vende, ainda menos incorreção política.
A lasciva “loura da Gillette” Platinum Plus que surgia no espelho do banheiro, na fantasia do jovem marido, ou o “homem de Marlboro” envelheceram mais que o Homem (ou a mulher) de Neandertal.
Mas ainda cai bem uma SUV “zerada”, uma “Cabine Dupla” como trilha sertaneja, e ainda mais um carro elétrico com seu bônus ético — cuidados com o fim do mundo, as malditas emissões de carbono.
A publicidade consumiu a “ideologia do consumo” da crítica marxista, em grandes colheradas, e tomou de sobremesa o “fetichismo da mercadoria” com requintes gourmet, na expansão global dos mercados, desde a queda do Muro de Berlim.
*
Se é certo que avançamos, desde os anos 1960, também regredimos aqui e ali, e andamos desinformados como nunca, ou como sempre, a despeito de agora termos zilhões de bibliotecas na palma da mão, online, e a despeito de todos os avanços da ciência e da aparição do Chat GPT.
De fato, estacionamos desde muito e muito antes. Ainda somos os mesmos, seu Belchior, se não em tudo, no essencial, no que mais diz respeito à “humana natura”
“Historiadores já calcularam que, ao longo de toda a trajetória humana, tivemos até hoje míseros 29 anos sem que alguma guerra estivesse em curso em algum ou em vários pontos do planeta.” Cito a indispensável e cara colunista Dorrit Harazim.
Ainda Harazim: conforme o portal Rule of Law in Armed Conflicts Online (Rulac), da Universidade de Genebra, existem, agora, “mais de 110 conflitos armados a espalhar desgraças. Ucrânia e Gaza são apenas os mais visíveis”.
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Jornais televisivos e notícias na internet — na seleção que fazem da desgraceira no mundo, e na forma como os fatos são cobertos e apresentados — me lembram audições de teatro de um bonecos, com a mesma sessão repetida ad nauseam, apenas renovados, modernizados, os meios de comunicação.
Mas quem seriam os titeriteiros, os ventríloquos das notícias que alimentam a economia, as análises políticas, nossa curiosidade, nossa distração no dia a dia?
Aposto uma colher de doce de leite que são todos da espécie Homo sapiens, “homem sábio”, essa ironia lançada há uns 300 mil anos.
Títeres e bonecos se confundem, se conformam em si, sombrias variações da natureza humana.
E não estão nem aí para espectadores interessados, indignados, compadecidos. Não se importam que a mula manque, querem é rosetar.
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Leio que Kurt Gödel (1906-1978), filósofo, matemático e lógico austríaco naturalizado norte-americano, é comparado a Aristóteles. E não se disputa que é um dos mais importantes da história no seu campo.
Também foi um desses gênios matemáticos atormentados, deprimidos, loucos, suicidas.
Acho que a única cena que me colou no visgo da memória no tortuoso e esquemático “Oppenheimer”, filme de três horas de duração que acaba de levar um caminhão de Oscars — e enfrentei numa madrugada da semana passada — pouco ou nada tem a ver com a história narrada pelo diretor Christopher Nolan.
A cena mostra um encontro do físico físico J. Robert Oppenheimer (representado por Cillian Murphy) com Albert Einstein (Tom Conti) nos jardins de Princeton.
Calhou de estar lendo “Maniac”, um dos “romances de não ficção” do holandês radicado no chile Benjamín Labatut, o outro, anterior, é “Quando Deixamos de Entender o Mundo”, editados pela Todavia. Seus livros tratam das ideias e dos personagens — matemáticos, físicos, lógicos — que revolucionaram essas matérias no século 20, refundaram a ciência e alicerçaram as revoluções tecnológicas — das bombas nucleares e termonucleares à computação. Quando Labatut narra como Gödel, aos 20 e poucos anos, desbancou os sonhos de um dos maiores gênios da época, Janos, depois John von Newman, lemos, de passagem:
“Perto do fim da sua vida, Albert Einstein confessou que o seu próprio trabalho já não lhe importava muito, mas que continuou a frequentar o Instituto de Estudos Avançados [de Princeton] — que tinha oferecido a Gödel uma cátedra (…) — só pelo privilégio de caminhar até seu escritório com o lógico austríaco ao seu lado."
Pois, no filme, Einstein passeia em companhia de um Gödel (James Urbaniak) já meio perdido em névoas de nada.
“Árvores são a estrutura mais inspiradora do universo”, ele comenta, ao ser apresentado por Einstein a Oppenheimer, frase que lembrou meu Yanipab. Claro que fiquei seu fã.
Na cena do filme, intuímos o estado de saúde de Gödel, seu alheamento, antes de acompanharmos os eventos bem conhecidos (não há spoiler possível aqui):
o festival de inteligência aplicada no desenvolvimento da bomba atômica em Los Alamos, cidade do Novo México, nos Estados Unidos;
a gestação complicada e o parto do orgulhoso filho comum de uma genialada nunca antes reunida, sob comando de um general;
a detonação da criança (Little Boy) sobre Hiroshima, logo de um clone seu (Fat Man) em Nagasaki.
É certeira a crítica feita ao filme, que apenas agora deverá ser exibido no Japão, por suavizar o extermínio de milhares de inocentes nas duas cidades japonesas. À parte as consciências torturadas de Oppenheimer (e a ingratidão que recebeu do país que o via como um super-homem) e Einstein, políticos e militares não esconderam seu contentamento.
“Oppenheimer”, quem duvida?, ficará associado ao fenômeno "Barbenheimer" — sua concorrência de bilheteria com o estrondoso e bem-sucedido “Barbie”, lançado na mesma época — nunca às bombas despejadas no Japão.
“Barbie” é o mais genuíno ícone de uma era na qual uma notícia como “Kate Middleton se desculpa após foto manipulada” lidera rankings de audiência.
Seria diferente se cada espectador de “Oppenheimer” fosse estimulado à leitura de “Hiroshima”, de John Hersey (Companhia das Letras, 2002), considerada, não por acaso, a reportagem mais importante do século 20, e que narra em minúcias, com o testemunho de sobreviventes, cada momento depois da explosão às 8h15 de 6 de agosto de 1945. Publicada originalmente numa edição inteira da revista “The New Yorker”, jogou água na fervura do entusiasmo popular nos Estados Unidos com as bombas detonadas.
Ainda pode ser diferente para quem se interessar pelo livro.
Vale também ver o excepcional documentário “Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria”, na Netflix. O primeiro episódio traz depoimentos de sobreviventes e argumentos contra e a favor o uso das bombas na guerra contra o Japão.
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No país, passamos a associar Hiroshima à canção de Vinicius de Morais (com Gerson Conrad) que ouvimos desde 1973 na voz luzidia de Ney Matogrosso (acompanhado apenas pela flauta de Sérgio Rosadas e o baixo do argentino Willy Verdaguer), no disco clássico do Secos & Molhados. Diz “Rosa de Hiroshima”:
“Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada”
Sempre impliquei com a bela “A Paz”. A canção foi composta em 1986, por João Donato e Gilberto Gil, também chamada “Leila 4”, e lançada no ano seguinte por Zizi Possi.
Os versos “A paz/ Fez o mar da revolução/ Invadir meu destino; a paz/ Como aquela grande explosão/ Uma bomba sobre o Japão/ Fez nascer o Japão da paz” nunca me desceram bem.
Me incomoda a suavidade melancólica, algo açucarada, inspirada na carnificina atômica. Mas o mesmo, talvez, se possa dizer da linha melódica de “Rosa de Hiroshima”, nunca da letra.
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No fim, “Oppenheimer” anuncia a abertura de outro festival, dedicado à produção de bombas de hidrogênio, termonucleares, muito mais destrutivas, dessas que agora estão na mão de Vladimir Putin e espalhadas por toda parte.
Mas, hoje, bombas nucleares também podem ser “táticas”, fracionadas, ogivas de plutônio com metade do poder de destruição da bomba de Hiroshima, facilmente ajustáveis ao cone de um míssil de curto alcance.
Estima-se que Putin tenha um arsenal de 2 mil desses artefatos a seu dispor.
“Uma guerra nuclear frequentemente é descrita como inimaginável. Na verdade, não é imaginada o suficiente”, diz a abertura de uma excelente reportagem especial do jornal “The New York Times” sobre o tipo de guerra nuclear que está em jogo neste momento, e o cenário de destruição causado por uma única explosão.
Metáforas como “inferno” — com todos os círculos dantescos — ou o batido refrão do senhor Kurtz de Joseph Conrad na novela “O Coração das Trevas”, e do capitão Kurtz (Marlon Brando) em “Apocalipse Now”, o filme de Francis Ford Coppola — “o horror, o horror” — são fracas para se aquilatar o efeito de uma explosão equivalente a 10 mil toneladas de TNT sobre o solo, com temperaturas geradas em seu interior maiores que as da superfície solar.
*
Na coluna de sábado passado no “El País”, o também indispensável Antonio Muñoz Molina trata de relatos de cidadãos sentenciados com penas de prisão na Rússia apenas por chamar de guerra a guerra — a guerra imperialistas de invasão e destruição da Ucrânia.
Entre as histórias de vida mencionadas há a de um homem sereno e melancólico, diz Molina, que aparece no documentário “Putin’s War at Home” (A guerra de Putin em casa), da jornalista e diretora inglesa Gesbeen Mohammad, ainda não exibido no Brasil.
Porque escreveu garrafal “NÃO À GUERRA” em seu perfil numa rede social, esse homem foi expulso da universidade onde trabalhava e “repudiado e evitado como um enfermo contagioso pelos ex-colegas”, escreve Molina.
O sujeito ainda se viu execrado dentro de casa pela filha adolescente, vítima da feroz propaganda do ditador, que induz a formação de fanáticos na juventude russa, como acontece em qualquer regime fascista ou nacionalista xenófobo.
Aço do açúcar, mel da melodia
A imagem acima reproduz o poema “Ão”, de Augusto de Campos. Zé Miguel Wisnik o recitou em aula-show na ABL, e me desconcertou.
Não me lembrava, não prestara atenção, não conhecia o poema, não sei, havia ali algo de familiar. Caetano Veloso e próprio Augusto o apresentam nesta performance:
A forma de “Ão” — delgada coluna vertical centralizada, formada por palavras, sílabas e letras, vem da poesia do estadunidense e. e. cummings (1894-1962), que preferia ter o nome grafado em minúsculas — costuma dar uma canseira em não iniciados no verso concretista.
Facilito nossas vida nessa transcrição, com a devida vênia:
“do/ os/ so/ do/ so/ m/ do/ tutano/ do humano// sem/ o / mel/ da/ mel/ o dia// cas/ ca/ do ser// c/ res/ ser// a/ ni/ mal/ ânim/ a alma// psi/ u/ ou/ ve/ a/ can/ ção/ sem voz/ que/ vem/ do/ fio/ do/ vão/ da/ foz/ do/ teu/ va/ zio// o coração/ não// o/ so/ l/ sem/ dó/ da/ solidão// aço/ do/ açú/ car/ joão/ do/ tom// o/ ão/ do/ om”
É a mais perfeita tradução já criada da música de João Gilberto (1931-2019).
“Do osso do som, do tutano do humano sem o mel da melodia” na primeira estrofe, faz pensar na quintessência do samba na extração estética de João na Bossa Nova. O mesmo em “psiu, ouve a canção sem voz que vem do fio do vão, da foz do teu vazio”;
Já “o sol sem dó da solidão”, creio, é um dos maiores achados poéticos de nosso idioma.
Sobre “aço do açúcar”, “joão do tom” e “ão do om” —sendo esta última sílaba o fonema do mantra hindu — não sei bem o que diga desses versos.
Se “aço do açúcar” está para “joão do tom”, o poeta associa, quem sabe, o que para ele é a melodia edulcorada de Jobim à contenção, dura, resinosa, do canto-violão de João.
Humildemente, em tal caso — se se pudesse discrepar de um poema — discreparia.
Penso que Tom e João são inseparáveis na grandeza da invenção, e pode-se, por que não?, retemperar o açúcar com a têmpera do aço sem eliminar seu doce. E algum açúcar há na voz de João, e do “bÃo”.
Pode-se, até, avivar o sabor, a edênica doçura do “mel da melodia” que se colhe neste fabuloso encontro de duas potestades de nossa música.
Nesse caso, fico com Caetano Veloso em “A Bossa Nova É Foda” (do álbum “Abraçaço”, de 2012) quando canta, na modulação da terceira estrofe, “…O tom de tudo [que] comanda as ondas do mar”, e, no falar do MMA, “anjo cruel”, “destruidor”, anjo que deu ao “velho profeta” (Vinicius) a “chave da casa de munição”. Em outras palavras, Jobim, em seu “brilho intenso”, e “monumental”, é um gênio da raça.
Outra bonita tradução da música de João Gilberto, também analisada na referida aula de Zé Miguel, é “João”, de Arnaldo Antunes e Cézar Mendes (Cesinha), lançada por Antunes no álbum “O Real Resiste” (2020):
“São tantos e tão poucos têm noção
De como se inaugura uma nação
Não é bem com monumentos
Ou com balas de canhão
É quando uma brisa bate na respiração
E entra no juízo de um João
Que dedica todo empenho
E amor ao seu engenho
Para arejar
Os cantos da canção
E dar sentido à nossa sensação
(…)
Quando uma só pessoa
O silêncio aperfeiçoa
Toda a multidão
Escuta o coração
E se torna civilização”
A última estrofe é de tirar o fôlego. João, justamente, conseguiu aperfeiçoar o silêncio, não se duvide.
Cacaso, 80
O poeta, letrista e ensaísta faria aniversário redondo, 80 anos, ontem, quarta-feira (13/03).
Mineiro de Uberaba, Antonio Carlos de Brito (1944-1997), o Cacaso, marcou sua vida breve com uma personalidade ímpar, mesmo para um “poeta marginal”, ícone da “geração mimeógrafo”, entre os anos 1960 e 1970.
Rico, filho de fazendeiro, o pai entregou-lhe um apartamento no Rio, na avenida Atlântica, que virou um randevu da contracultura, um entra e sai de músicos e escritores.
A missão paterna de fazê-lo comerciante de sebo, vendido para fabricantes de sabão, no Rio, fracassou. Cacaso se tornou professor universitário, um tipo recatado, charmoso, querido por todos.
Eis sua figura: baixote a redondo de cara e corpo, cabelos longos à chanel, bolsa a tiracolo, camisa de malha, sandálias de couro e meias soquete.
Deixou uma poesia singela, com altos e baixos. Sua principal herança, me parece, é a do letrista, parceiro da fina flor do cancioneiro de uma era esplêndida.
Fez umas 300 letras de canções, em quase todos os gêneros, com uma miríade de estrelas como Edu Lobo, Francis Hime, Sueli Costa, Elton Medeiros, Tom Jobim, Toquinho e Djavan.
Entre minhas preferidas estão “Lambada de Serpente” (com Djavan), “Amor Amor”, “Face a Face” e “Dentro de Mim Mora um Anjo” (todas com Sueli), “Sem Fim” (com Novelli) e “Lero-Lero” (com Edu Lobo).
A Rádio Batuta do Instituto Moreira Salles tem na rede um programa caprichado sobre o artista, com roteiro e apresentação de Otávio Filho.
E o álbum da Kuarup (“Cacaso 80 Anos”), que recebeu boas-vindas deste Escrevidas, com vários interpretes e 13 faixas, está nos canais de streaming.
O Canal Curta exibe de vez em quando “Cacaso na Corda Banda” (2016), ótimo documentário dirigido por José Joaquim de Salles e PH Souza.
Recadin
Se deseja me escrever diretamente, com uma sugestão, uma discordância, um não-sei-quê, utilize o e-mail siuvesescrevidas@gmail.com.
Rodapé
Se você curte lógica e matemática, ou se interessa pela contribuição de Gödel para a teoria da computação, recomendo este artigo breve de Paulo Henrique Ribeiro Gabriel, da Universidade Federal de Uberlândia. Dá uma boa pincelada na história.