Capítulo um: "Itália"
"Itália tinha olhos verdes e esta manhã se sentou ao meu lado no ônibus entre Senhora da Primavera e a capital..."
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Duas palavrinhas e uma apresentação”
No próximo domingo: “Capítulo dois: “Geninho”
Para Lino da Silva Domingues, em memória
...Meu violão ficou tão triste, pudera/ Quisera abrir janelas/ Fazer serão/ Mas você me navegou/ Mares tão diversos/ E eu fiquei sem versos/ E eu fiquei em vão...
Toquinho e Chico Buarque, Lua Cheia
Itália tinha olhos verdes e esta manhã se sentou ao meu lado no ônibus entre Senhora da Primavera e a capital; eu 17, janela, ela 16, corredor; eu rapaz noturno, ela moça em flor. Quando se recostou, julguei que Itália me concedera um olhar mudo num mero aceno. Perfeito parvo, permaneci voltado ao Policarpo Quaresma, digo, ao seu Triste Fim, que havia aberto sobre o colo estudantil num esforço atroz de esconder a consciência do milagre que se operava em pleno dia e um ônibus cheio por testemunha. Ali, agora, era ela e era eu, desde que comecei a tê-la estrela, singularidade, figuração que ofuscava o mundo, e Itália havia devolvido meu flerte num sorriso triz.
Estávamos no Bar do Honey uma noite de sábado depois da missa, quando Itália, primeira vez, me permitiu que a visse, ou seja, assentiu a meu encanto. Desconcertado, bebi um gole de cerveja, acendi um cigarro, traguei e soltei algo da fumaça pelo nariz, sendo repreendido por um Mariozinho Saraca atento a meu lado, e nada cúmplice.
“Que isso, sua besta? A menina bonita te olha e você solta fumaça pelo nariz...”, ele me censurara, roendo-se de despeito, eu me roendo por lhe dar razão, era imperdoável meu desfeito, digno do desprezo de Itália.
Itália vestia branco e malva, notei ao absorver o ruído suave que ela produzia no gesto de reclinar o assento e fixar a posição da poltrona do ônibus. Seu modo sereno confrontava uma audível e ineludível palpitação. Inutilmente, pelejava por terminar um parágrafo do Quaresma, e não ultrapassava a maldita linha, por não apreender a sentença, e percorria a página de norte a sul como quem espia um mapa no estrangeiro. Então, ao modo de quem afeta entender o mistério de uma bula esotérica, eu respirava, profundo, e olhava a paisagem nacional à janela, buscando alcançar no veloz contravir de árvores, pássaros, casas, jamantas e nuvens um naco de coragem, algum traço de frase que dizer a Itália, que fosse em tupi-guarani. Mas não. Como a mais néscia das criaturas, enquanto ela estivesse ali, sem segurar um livro, talvez a não pensar, e apenas se deixar amolecer até a bruma do sono, eu me revolvia em cada célula, a sucumbir, anti-herói cômico, por ter Itália a meu lado. É que dentro, no coado das sensações, sendo essa, sim, uma pequena tragédia da idade de uma alma mole, meu arrebatamento já era, em si, alguma coisa grande; se ousasse transpô-lo, talvez pusesse a perder aquela anunciação prenhe de quimeras; ridículo assim: a mera antevisão dos nossos braços roçarem sobre o braço entre as poltronas me perfazia, como cada voo latente perfaz o pássaro pousado, eu nem pássaro nem passarinho, bela besta quadrada.
A verdade era que contavam séculos em semanas que todas as coisas, o corre-corre das ruas, o entra-e-sai da padaria e do açougue e do meu meio expediente na Magazine, os deveres do cursinho, a música, a missa do sábado e a companheirada seguinte no bar, tudo tinha como engrenagem e conjectura imaterial os olhos verdes de Itália, e nada havia em mim, integrado ao Universo, que deles não cuidasse. Dessa condição decorria uma engraçada variante de daltonismo que cegava para o que não era meu verde, fossem o turquesa do ocaso ou os amarelos matinais.
Eu fumava aos pacotes, à noite olhava o céu com sestros de bandarra, então rabiscava devotos versos de amor num caderninho espiralado em louvor à luz que banhava seu ser ao meu olhar. Assim, minhas horas se tornavam intermináveis e completas, ainda que irrecuperáveis num álbum de retratos, ainda que singelamente torturadas. Eu percorria um canteiro de rosas e o convertia no campo de flor do romance inglês ordinário que comprara numa promoção do reembolso postal e andava a ler; eu pensava como quem navega, a flutuar.
Mas, a se flutuar, e de flutuar tanto, perde-se o chão e pronto, tombo certo, como quer o real comum, e prova o Galileu ou o realismo além do real. É claro que me esborrachei, não muito depois, ao ver Itália dançar com um rapaz da gente rica do burgo, estrábico, baixote e redondo, num baile do Social em que eu entrara clandestino. E não podia aceitar como os bugalhos do monstrengo se atreviam a procurar tão firmemente, em ângulos agudos, meus olhos verdes de Itália. Pois lá estavam, ou melhor, ela e seu apêndice, a rodar alegres no salão. Tomado, então, por impulso insuspeito a uma natureza pacata, caminhei até o par equívoco, tomei Itália nos braços e a beijei, ao tempo em que num pontapé repunha o quasímodo no seu lugar. Qual, ai de mim. Próprio pierrô desprezado afundei-me em lágrimas no meu canto, e caí como o corpo morto cai num verso italiano. Mas não. Sucedeu, quem sabe, só de o sonho ruim terminar, e eu despertar de uma pequena lenda, agora afeito a pesadelos sem lastro, dos que atacam no saldo da insônia. Mas sei que guardo os olhos verdes de Itália.
*
Meio milênio se passara, pensei ter avistado Itália num shopping da capital. Era uma tarde de outubro. Ela apoiada por quem creditei vovó de duas crianças bem trajadas e penteadas, empurrando uma terceira no carrinho inglês recoberto de tecido xadrez vermelho e preto. Como interpretar a estranha conjunção, o afogamento do qual emergissem sob as luzes brutas do shopping os restos de nós dois, que apenas eu retivesse, que apenas em mim rebrilhava? Logo me contrafiz, e a cena se desvaneceu. Os olhos verdes de Itália ficaram, no fundo, a radiar essa narrativa.
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