Escrevo insanamente para manter a sanidade
Extra, extra: o balancete de 9 meses e os 10 princípios da newsletter
ATENÇÃO: o artigo pode conter palavras duras e conteúdo impróprio para gurus motivacionais e mercadores de felicidade e riqueza, como coaches e influenciadores.
(Leitora amiga, amigo leitor, bem-vindos a bordo desta canoa furada do jornalismo profissional e adjacências virtuais.
A pitoresca newsletter cultural Escrevidas precisa do seu suporte. Considere incentivar a manutenção dessa desajuizada escritura, tornando-se assinante pago.
Obrigado por ler.)
“(…) escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites miluma-páginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas mesmam ensimesmam onde o fim é o começo onde escrever sobre o escrever é não escrever sobre não escrever (…)”
“Galáxias”, Haroldo de Campos (1929-2003)
Me alegra que me entendam e me leiam a sério.
E me apraz que me tomem por isso e aquilo, até por “doudo” (doido nos tempos de Machado), e me leiam mesmo assim.
São tão poucos!
Ainda que muitos! para quem escreve livremente sobre a vida, o cotidiano e suas conexões com o mundo — temário que, admitamos, anda fora do mercado; creio inclusive que dos antiquários.
São muitos para um inepto da sociabilidade nas redes sociais, das quais se autoexilou, que está há décadas afastado das redações e, além do mais, oficialmente idoso.
Em seus nove meses de existência, a página angariou 174 assinantes, sendo 19 pagos.
Aos 19 devo tudo: a continuidade da coluna.
Se não posso viver nem pretender viver de Escrevidas, tenho como pretextar minha teimosia, fazer de conta que não escrevo por diletantismo.
Sempre fui remunerado pelo meu trabalho, quase sempre por seu devido valor.
Mas meu faz de conta de não trabalhar de graça se tornou decisivo agora, é a boia à qual me agarro para deixar a vida me levar.
O Escrevidas é meu ofício.
Perante meu público (Viralizar nunca! é meu grito do Ipiranga, isto é, do Arrudas) assumo solenemente compromisso com estes dez princípios:
1. Rigor na apuração e seleção de “fatos culturais relevantes” no campo artístico;
2. Rigor na observação da vida e na crítica das mudanças sociais;
3. Zelo no compartilhamento de leituras, audições, viagens, vivências, memórias de 38 anos de jornalismo e antes;
4. Amor pela língua portuguesa;
5. Valorização da música, da canção popular e de sua influência cultural;
6. Obsessão com a qualidade e clareza do texto;
7. Independência;
8. Falar do que der à telha;
9. Sinceridade;
10. Pontualidade.
Só posso afirmar, com as cordas do coração esticadas como as de uma viola caipira, que a essas mal batucadas linhas não falta empenho.
O Escrevidas pauta meus dias, tudo que vejo, leio, converso e cuido.
Passeio ou saio à rua a cumprir tarefas com um caderninho no embornal.
Se algo me bate no bestunto, paro e anoto para guardar; isso também pode acontecer durante horas de insônia, em meio a leituras, ao ver TV.
Escrevo e reescrevo até o último instante.
Até a hora agá alimento a ilusão de ter feito o melhor que pude na escolha do tema e no acerto rítmico-melódico das frases, que procuro harmonizar para oferecer uma leitura fluída, distinta e prazerosa.
Essa ilusão dura um traque.
Minhas tardes e noites depois da publicação são horas amargas que se prolongam até eu iniciar a redação da newsletter seguinte.
Sinto sempre que podia ter feito melhor.
No caso mais recente, o resultado de “Maninhas” não me pareceu fiel o bastante ao que desejava e necessitava dizer.
Esse permanente sentido de fracasso só me serve de desculpa para fracassar melhor, mais intensamente, na semana seguinte.
Para o mal-estar da imperfeição não há remédio.
E popularidade não posso esperar.
O saco não tem fundo.
Mas se penso em desistir dessa pinoia e mandar tudo às favas, regrido a um borrão de mim mesmo.
Ao mesmo tempo sei, como não? (“Merda! Sou lúcido!”), que esse morder o próprio rabo não passa de bruta quimera reabsorvida no sumidouro da internet.
Nessa distopia particular, sigo numa espécie de estado vegetativo perante as rotinas do mundo — economia, tecnologia, idolatria, manias.
Mas, como pretenso palhaço, faço meu número no picadeiro da Substack para meu diminuto e respeitável público.
Assim me adio na era do viral-vazio — no auge da dissolução do humanismo, da naturalização da pornografia e normalização da loucura, no dizer da Dorrit Harazim.
*
O que tentei escrever na semana passada caberia melhor na arte musical, nas notas de um piano, nos acordes de um violão, numa valsa ou modinha.
Ah, se eu pudesse...
A música cria seu próprio espaço. Está viva sob os escombros do grande terremoto tecnológico que solapou os alicerces do propósito humano de valorizar a vida por meio da criação artística.
Sempre haverá uma minoria que verá consolo na música.
Não falo da “palpitação rítmica mecânica” produzida industrialmente para o consumo massivo, dessa música que “não deixa falar o silêncio”, na expressão de Roger Scruton em “A Alma do Mundo”.
Penso, ainda nas palavras desse filósofo, na música como uma “voz que surge do silêncio e que o usa como um pintor usa a sua tela (...)”
Já com as palavras o buraco é mais embaixo.
Muito mais que no tempo de Shakespeare e seu “Hamlet”, há enxurradas de nadas a inundar nossos espíritos vazios.
O que está lendo meu Príncipe?
Palavras, palavras, palavras...
Nas conversas, nas mensagens, nas redes e na literatura “dominante”, as pessoas querem ler e ouvir apenas a si mesmas.
O encanto e o amor pela língua portuguesa caiu do galho.
Ciente disso, travo a luta mais vã de achar palavras que ainda possam roçar o inefável, segundo um verso de Rilke nos “Sonetos para Orfeu”.
Palavras que ainda ecoem na mente e no coração das gentes.
*
Escrevo insanamente para manter a sanidade.
Escrevo por me sentir livre para pensar e dizer o quero como quero. Sobretudo livre para dizer não.
Livre do jugo ideológico que suga a autonomia humana e impõe como natural, senão ideal, o negacionismo da razão.
Tento escrever com clareza para que não se desentenda muito do Escrevidas.
Sinto só de imaginar que isso ocorra.
Tento escrever como não escrevem os programas de inteligência artificial, treinados na chorumela padronizada, por sua vez influenciada pelos próprios algoritmos de Google, processadores de textos autocorretivos etc.
A máquina de escrever aprendeu a escrever, escreve por você, escreve você e a todos nós.
*
Para além disso, quem escreve tem de se defrontar com questões que vêm de dentro e interagem com outras que vêm fora, trazidas pelo mundo.
Primeiro as de dentro.
Uma crônica de vida pautada no desenrolar de cada dia trará uma ou outra marca dos altos e baixos da alma (prefiro a mente ou cérebro, é mais elegante) ou estará de brincadeira com o leitor.
Nessa jogada atuam a bioquímica cerebral, com seus neurotransmissores etc., e os distúrbios mentais — insônia, depressão, neurose, paranoia, o escambau.
Tal contingência pode até nos “ditar” um parágrafo meio automático, uma virada de rumos, um viés de frase, um período dispensável, algum desregramento raivoso.
Também pode interferir na pontuação o papel dos tais estabilizadores de humor de que dispõe a farmácia espiritual, bem como sua falta, quando necessários.
Buscar um equilíbrio na flutuação emocional e afinar certa coerência têm seu custo.
E as questões do lado de fora, que são das manhas do mundo?
Manter a compostura e guardar distância de radicalismos entorpecentes é coisa resolvida.
Passo ao largo do grito fanático e da sanha oportunista.
Assim como procuro escrever com respeito e delicadeza, não é de agora — nunca precisei de bedéis ou cartilhas de correção política.
Nada resolvido, e que temo muito mais, é o uso das figuras de linguagem, sal da terra para quem escreve.
Tudo indica que as figuras não cabem mais num tempo de pouca leitura profunda, patrulha identitária, muita conversa oca e troca-troca de meme no Whats.
Fico apenas na grave questão da ironia.
É evidente que a ironia se tornou um recurso inalcançável para muita gente, em distintos graus de analfabetismo retórico.
Você diz algo com efeito, insinua uma compreensão mais abrangente de um fato, tenta dar valor a uma conversa e te olham de cara feia; tomam o dito ao pé da letra, pelo não dito.
Não vivemos mais “nos tempos em que havia tempos atrás”, como diz um verso de Caetano.
É como se tudo tivesse sido criado agorinha — costumes, linguagem, moral, “história”.
O problema da ironia é decisivo para quem pretenda superar a mesmice e a raleza da prosa.
Portanto pego com santo Houaiss, santo de minha devoção, como santo Aurélio.
(“Para todas as coisas, dicionário”. Levo a sério desde criancinha o que recomenda a bonita canção de Nando Reis, que jurava ser da Calcanhoto, na voz de Marisa Monte.)
Ironia
substantivo feminino
1 ret figura por meio da qual se passa uma mensagem diferente, muitas vezes contrária, à mensagem literal, ger. com objetivo de criticar ou promover humor [A ironia ressalta do contexto.]
1.1 lit esta figura, que se caracteriza pelo emprego inteligente de contrastes, us. literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos
2 m.q. asteísmo (no sentido de 'uso sutil e delicado da crítica irônica')
3 qualquer comentário ou afirmação irônica
4 p.ext. uso de palavra, expressão ou acepção de caráter sarcástico; zombaria
5 fig. contraste ou incongruência entre o resultado real de uma sequência de acontecimentos e o que seria o resultado normal ou esperado
5.1 fig. acontecimento ou resultado marcado por esse contraste ou incongruência ‹uma i. do destino›
*
Escrevidas é a encarnação digital da quimera de um aluado cabeça-dura.
Por preguiça e outros breguetes existenciais, ele espera como “Pedro Pedreiro penseiro”, em dois anos e muita paciência, bater “no fim da fila do fundo da Previdência” (as canções aludidas estarão sempre na playlist da edição).
Isso se Providência e Saúde deixarem.
Você, minha leitora, você, meu leitor, são bem-vindos demais.
Convidados honorários a assistir e participar dessa desventura.
Não ganharão absolutamente nada com isso, já sabem.
Quanto mais durará a teima-toleima de um afogado no próprio dilema?
Quem souber, por piedade me envie um bilhetinho pelo email informado ao pé da coluna.
Seja como for, até seu último suspiro essa newsletter permanecerá fiel ao que empenha, ou o colunista terá ficado doudo de pedra, e aí já poderá ser visto a vagar por ruas de Barbacena, como o cão Quincas Borba.
*
O romancista Javier Cercas, em sua artigo mais recente, recomenda que não nos fiemos na raça dos escritores (nada a ver, como ele distingue, com autores de literatura heroica, edificante e terapêutica, com defensores de causas justas ou injustas e, junto por minha conta ao que ele diz, com mocinhos de bang-bang que arrebatam feiras literárias e arrebentam nas redes sociais).
Cercas nos diz de lá, a tradução e os grifos são de cá:
“(...) Porque os escritores, digamos de uma vez, somos um perigo público. A felicidade é muda, literariamente improdutiva: em um mundo feliz não haveria literatura (não ao menos no romance; talvez poesia, pouca e péssima). Os escritores nos alimentamos do mal, não do bem; somos uns urubus; vivemos do lixo: da discórdia, da dor, da violência, do infortúnio. Nesse sentido nos parecemos com os jornalistas, a diferença é que os jornalistas se dedicam a descrever o lixo, enquanto os escritores nos dedicamos a reciclá-lo. (...)
“(...) Somos uns chatos, uns egoístas sem escrúpulos que escrevemos pelo puro prazer de escrever, com propósito desmancha-prazeres, travesso e niilista, formulando perguntas sem resposta que só servem para embatucar a vida das pessoas e mostrar que a realidade é ainda mais complexa do que parece.”
*
Todo esse negócio de literatura edificante, reinvenção, autoajuda, coaching (mil vezes o coaxar da sapaiada na lagoa) e a nova e influente religião dos motivacionais me matam de tédio e preguiça; tende piedade, Senhor dos Passos.
*
Fecho meu balancete com uns versos de “Tantas Palavras” (Dominguinhos e Chico Buarque).
“Nós aprendemos
Palavras duras
Como dizer perdi, perdi
Palavras tontas
Nossas palavras
Quem falou não está mais aqui”
Como diz o cabrão do Slavoj Žižek, “life is shit, enjoy!” (A vida é uma merda. Desfrute!)
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