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Duas palavrinhas e uma apresentação”
“Capítulo um: “Itália”
No próximo domingo: “A Hora Azul”
...Qualquer canção de dor/ Não basta a um sofredor/ Nem cerze um coração rasgado/ Porém ainda é melhor/ Sofrer em dó menor/ Do que você sofrer/ Calado // Qualquer canção de bem/ Algum mistério tem/ É o grão, é o germe/ É o gen da chama...
Chico Buarque – Qualquer Canção
Geninho Albuquerque perseverou mas não passou no vestibular. Por dezoito anos tentou entrar na faculdade de medicina da federal. Fez cursinhos, teve ajuda de professores particulares, se submeteu a um método oriental de ensino, em seu favor fizeram-se promessas, rezaram-se missas e pagaram-se óbolos a santos, como agrados a orixás, em vão.
Passar na medicina tornou-se o projeto de vida, fé, inexorável sina de Geninho. O conheci no ônibus da Viação Zás-Trás, entre Nossa Senhora da Primavera e a capital, já no terceiro round do seu calvário vestibulando. O medo de fracassar mais uma vez e a culpa encorpada o faziam dobrar-se sobre si mesmo.
Geninho Albuquerque não era alto nem pequeno, era fornido, cabelos lisos de fios grossos, testa ampla sobre olhos negros miúdos que um rosto largo, redondo e queixo algo prognata escondia, tal como o nariz curto. Era reservado e monossilábico. O silêncio e a solidão o assediavam. Ele sentou-se ao meu lado, na janela do ônibus, abriu uma apostila de química e começou a resolver exercícios de cálculo estequiométrico.
Para puxar conversa, sabendo-lhe primo do Quel, pedi fogo para acender um Minister. Geninho me ofereceu um isqueiro de plástico branco, um Bic, que tinha estampada a marca de seus Hollywood. Observei que a timidez não lhe permitia se virar inteiramente para o interlocutor. Quando lhe agradeci, pude notar apenas seu perfil dilatado esboçar um quinto de riso, e a cabeçorra se mover inerte.
Geninho vivia com papai e mamãe numa mansão que dominava a Travessa do Cerol, um dos logradouros mais exclusivos da cidade, a meia hora de caminhada da minha rua do Moinho, e algo mais perto da casa do amigo Lez, na rua das Jabuticabeiras. Um muro que recordava uma fortificação cercava a casa e permitia a quem se aproximasse do grande portão de aço, através de uma breve e bem cuidada alameda, divisar apenas o desenho as duas lâminas de telhados verdes que projetavam o interior do lar dos Albuquerque, a quem acabaria me achegando, ao visitá-los algumas vezes a tiracolo do Quel. Assim, sucedeu de Geninho vir a frequentar A Turma. Durante quase dois anos, raramente deixou de nos acompanhar, depois da missa de sábado, às saídas a um barzinho, Honey ou Samantha’s amiúde, para entornar umas e outras e tagarelar. Como o Quel, o Théo Lamaior e o Fau, ele dava-se com gaiolas e passarinhos, mas o que mais prezava eram os álbuns de figurinhas que colecionara desde criançola. Ele os mantinha em perfeito estado, encapados e grossos por ondulações da goma arábica que usava para colar suas estampas de craques da Seleção, animais selvagens, estrelas do cinema e vultos da pátria.
Havia algo de obscuro e fatal na vida dentro daquele casarão, notei, ao penetrar a sala de visitas pela primeira vez, depois de vencer a passarela enfeitada por um roseiral cor de enxofre e canteiros acimentados de malvas e copos-de-leite, que cortejavam ao largo ipês e castanheiras. Havia na sala, acarpetada e forrada de papel parede magenta, um sofá de couro cor de musgo, estante, cristaleira e uma TV Semp com tela azul sobreposta e atarraxada à caixa com pequenos parafusos niquelados aparados por arruelas de borracha, aparelho que devia permanecer ali desde os anos mil novecentos e sessenta, a travar o advento dos televisores em cor. Logo, o visitante se achava na copa da casa, meada por uma simples mesa de fórmica com quatro cadeiras, de uma humildade que contrastava a extensão e riqueza que o exterior da propriedade exalava. Nossa Senhora da Conceição e o Sagrado Coração de Jesus abençoavam o aposento. Mas o que mais me impressionava na casa de Geninho era o banheiro social, que não tinha menos de cinquenta metros quadrados, pé direito alto e, de cima abaixo, paredes revestidas simetricamente por azulejaria preta e rosa-persa, mesmos tons de pia, vaso e bidê, conjunto que proporcionava a quem se visse ali, trancado, com a imagem refletida no espelho e as luzes acessas, uma excitação quase lisérgica, senão a de atuar num filme de horror.
O Quel me contaria num pé de ouvido, numa de nossas rodas de Bhrama no Honey, que o Geninho nunca conseguira se libertar dos cuidados e da vigilância paternos. Quando fez 16 anos, o dentista Lítio Albuquerque, tal era o nome do pai, para celebrar esse “ritual de passagem”, conforme disse, e administrar o “remédio”, contou, então, que lhe fora aplicado pelo avó de Geninho, além de regalar o filhão, o levara de carro a um bordel de luxo na capital, acertara o preço com a cafetina e com ela definira quem seria a primeira mulher a se deitar com o moço, “uma dona muito sadia”, conforme exigiu, então; quando os dois foram para o quarto, o doutor Lítio permaneceu na pequena antessala do lupanar, sozinho, com uma Coca-Cola e um velho exemplar da Manchete, era um final de tarde, depois, noite entrada, regressariam os dois a Senhora da Primavera.
O primo também me contou que Geninho sempre fora bom aluno e terminara o científico com ótimas notas; na sua turma, a mesma do Lez, era campeão em matemática e ciências. O pai, contudo, insistia em acompanhar o treinamento do filho, e se incomodava quando ele, aborrecido, ia se fechar no quarto para estudar a sós. A partir do sexto ano de insucessos nas provas do vestibular, eu soube mais tarde, os Albuquerque se reuniam em silêncio, durante horas, na sala que permanecia escura até depois do pôr-do-sol, sempre que saíam os resultados das provas e se constatava um novo fracasso do rebento. O Quel estivera na casa numa dessas ocasiões para se solidarizar com o primo e me contou que se sentira como se houvessem, ao mesmo tempo, comparou, mergulhado num desfiladeiro, à espera da queda, desfecho pelo qual, pensava o amigo, os três ansiavam, mas que se adiava e se adiava, e ele, Quel, assustado, logo deu um jeito de se mandar. Foi uma das últimas vezes que ele pôde visitar os parentes. Os Albuquerque, aos poucos, deixaram de o convidar para almoçar aos sábados ou sair num dos raros passeios de bicicleta que ainda faziam nos meses de férias, algumas vezes, com tempo firme, até São Sebastião do Breu, para procurar mudas de bromélias.
Depois do décimo primeiro ano de fracassos, Geninho já não frequentava às aulas do cursinho preparatório na capital. Tentou um pré-vestibular modesto que se instalara em Primavera, mas interrompeu as aulas na segunda semana. Deste então passou a estudar apenas em casa, repisando velhas apostilas, conforme um rito que iniciava logo no café da manhã, era interrompido no almoço, prosseguia à tarde e também à noite, depois do jantar, quando doutor Albuquerque, egresso do consultório, se sentava com o filho em hora extra, ele dizia, para “reforçá-lo na biologia”. E lá postou-se, a envelhecer, o cirurgião-dentista Lítio, diante do adolescente, do jovem adulto e do homem entrado nos trinta que jamais obtivera a pontuação exigida para cursar medicina na federal.
Bem antes, Geninho Albuquerque deixou de assistir às missas de sábado, às sete horas, na Matriz da Conceição de Primavera. Depois da bênção do padre Sísifo, há muito que não nos seguia ao boteco para falar de moças, futebol e passarinho. O Geninho se envenenara de vergonha.
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