E Sebastiana não deu mais fracasso
Do grande baile nordestino aos sambas de Noel e Paulinho da Viola, da crônica social de Bosco e Blanc à verve de Dussek, o humor segue dentro do compasso
Atualizado às 12:14, com a correção da grafia do sobrenome Dussek.
Seja bem-vinda, seja bem-vindo ao espanto e à resistência da escrita e do pensamento analógico.
A pitoresca newsletter Escrevidas conta com seu apoio.
Em cada texto, o autor se desdobra para produzir algo melhor e assim convencer a leitora e o leitor, que tenham meios, a contribuir para a existência da página, valorizando o trabalho autoral. Muito obrigado a todos os subscritores.
O conto “Réquiem do Boi”, também título do livro, sai neste domingo, você sabe, às sete em ponto da manhã.
A quem vem lendo essas histórias: o “Réquiem” é a foz onde deságua o Folhetim.
Na outra semana será a vez do 13º e último capítulo (“Poslúdio”).
Num Escrevidas anterior (Para desentristecer, fev. 29), eu falava de uma “dialética” entre alegria e tristeza no samba, e propunha um repertório de canções, ricas em beleza e consolação, que iluminavam essa relação.
Em outro texto (Quatro canções singelas, mar. 28), elegi e comentei composições que primam pela concentração emocional com simplicidade e delicadeza.
Eterno apaixonado pela música popular, me interessa igualmente o humor como traço marcante do nosso cancioneiro.
Pode ser humor debochado, escrachado ou a sátira cultural mais refinada da crônica de costumes.
Somos o país da “Caboca de Caxangá” (João Pernambuco e Catullo da Paixão Cearense), do “Batuque na Cozinha” (João da Baiana) e das “Touradas em Madri” (Alberto Ribeiro da Vinha e Braguinha);
Também o país do “Calango da Lacraia” (J. Portela e Luiz Gonzaga), da “Moda da Pinga” (Ochelsis Laureano) e do “Almanaque” (Chico Buarque);
Ou, ainda, da “Maria Fumaça” (Kleiton e Kledir Ramil), do “Fuscão Preto” (Atilio Versutti e Jeca Mineiro), da “Kátia Flávia” (Fausto Fawcett e Laufer) e do “Nostradamus” (Eduardo Dussek).
E aqui abro parênteses.
Nestes tempos cinzentos de guerras culturais — que no fundo são guerras cegas e incultas — devo notar o óbvio.
Tratar da graça e do humor (ou mesmo da beleza!) é um risco que corre um escriba (ainda mais o humorista, coitado).
O humor, quem disse isso, com outras palavras, foi o Fabio Porchat , anda manco e resguardado, temeroso de cair nas malhas virtuais das guardas revolucionárias da (nova) moral e dos (novos) bons costumes.
Assumo o risco e fecho parênteses.
Não vou me deter no carnavalesco, na piada de salão, na gozação, por vezes requintada, de tantas marchinhas, frevos e sambas — tudo já muito bem comentado e estudado.
Se praticamente desapareceu — e hoje fatalmente enfrentaria o binarismo da ordem algorítmica — a música de carnaval devia ser considerada bem imaterial do país — e ser ensinada nas escolas contra seu fundo histórico.
*
A partir do século 19, uma mestiçagem de danças e matrizes culturais estabeleceu a tradição musical efervescente que nunca parou de se recriar (ou até pode ter parado, decadência não é mito), e se consolidou entre as mais elevadas do mundo.
A música de carnaval, cuja era de ouro vai dos anos 1930 aos 1960, é parte desse tesouro.
Mas há bem mais que se ouvir com proveito no cabedal das canções irreverentes, dadas à bulha e à galhofa, na expressão machadiana.
Minha lista das 1001, que levo uma odisseia para formar e renovar, está recheada dessa expressão de leveza e alegria.
A principal fonte do meu prazer são falares e cantares que se estendem do Pará ao Rio Grande do Sul, das fronteiras do Mato Grosso aos sertões das Minas Gerais, cruzando todo o Brasil caipira.
A riqueza do idioma na tradição popular, com suas deliciosas variações regionais, se alicerçou em grande inventividade rítmica e melódica.
Mas chega de prosa. Som na caixa, Mané.
*
No amplo e risonho repertório de minha estima, não sei bem por que, tenho como epítome, como símbolo, o coco “Sebastiana”, de Rosil Cavalcânti (1915-1968).
Lançado por Jackson do Pandeiro (1919-1982) em outubro de 1953, num 78 rotações da Copacabana, caiu nas graças e na boca do povo.
Nas minhas “mil e uma” entram registros de “Sebastiana” com Jackson, Lucy Alves e uma versão de Gal Costa (1945-2022), com participação de Gilberto Gil (LP “Gal Costa”, 1969).
Vão todas na Playlist da edição, como as acima citadas.
A comadre Sebastiana, convidada a cantar e xaxar na Paraíba, se saiu com uma dança diferente e pulava “que só uma guariba”.
Ela gritava "A, e, i, o, u, ípsilon!".
Bastiana — para os mais chegados, — hoje sexagenária, virou celebridade conhecida de todo brasileiro de ouvido atento.
A estrofe da qual emprestei o título da coluna diz:
“Já cansada no meio da brincadeira
E dançando fora do compasso
Segurei Sebastiana pelo braço
E gritei ‘Não faça sujeira’
O xaxado esquentou na gafieira
Sebastiana não deu mais fracasso”
Outro coco cômico e de grande sucesso de Rosil, em parceria com Jackson do Pandeiro, é “Na Base da Chinela” (1962).
Toda a habilidade rítmica de Jackson fica patente nessa canção.
E clara sua poderosa influência — ao lado de Luiz Gonzaga — sobre toda uma geração de intérpretes e compositores surgida nos anos 1960/70.
É a crônica de uma épica forrozeira, tema comum ao cancioneiro nordestino.
Desta vez o baile, na casa da Gabriela, acaba em tumulto e em troca de chineladas, depois que um perverso derrama “pimenta bem machucada” no chão.
No baile, “o sujeito ia chegando/ tirava logo o sapato/ se tivesse de botina sola grossa, bico chato/ entrava pra dançar no baile da Gabriela/ tirando meia e sapato/ calçando par de chinela...”
Em 1953, Jackson gravou “A Mulher do Aníbal”, de Genival Macedo (1921-2008) e Nestor de Paula.
Na ótima coletânea em CD “Jackson do Pandeiro – Revisto e Sampleado
1998”, Chico Buarque e Zeca Pagodinho revisitaram o sucesso.
É outra notícia de um fuá, brincadeira que acaba mal, depois do baile nesse caso, quando o Zé enxerido vai se meter com “mulher de homem”.
“Que briga é aquela que tem acolá?/ É a mulher do Aníbal e Zé do Angá/ Que briga é aquela que tem acolá?/ É a mulher do Aníbal e Zé do Angá”, diz o refrão.
“Forró de Limoeiro”, de Edgar Ferreira (1922-1995) é mais um hit de Jackson dos anos 1950.
Registrado originalmente em 1954 com o ritmo “rojão”, do qual não tinha ouvido falar, a música teria em João Bosco seu principal versionista.
Ele a gravou duas vezes.
Uma no magnífico “Dá Licença Meu Senhor” (1995), com a sanfona e a grande da arte de Sivuca (1930-2006), como atração à parte.
Outra vez, em companhia de Moyseis Marques, João Cavalcanti, Alfredo del Penho e outros, em “Abricó-de-macaco” (2002), versão transformada, na expressão de Bosco, em uma “suíte nordestina”, onde entra uma memorabilia de referências musicais da região.
*
Chico Buarque e Francis Hime compuseram a gozada “Quadrilha”, da trilha do filme de Alex Viany (1918-1992) “A Noiva da Cidade”, lançada pelos dois num compacto simples da Som Livre, em 1977.
“[...] O forró corria manso, sem problema e sem vexame
Quando o chefe da quadrilha decretou changer de dame
A mulher do delegado rendeu o bacharel
O peão laçou a jovem filha do coronel
A Terezinha Crediário deu um passo com o vigário
A beata com o sacristão
Diz que a senhora do prefeito
Merecidamente eleito
Foi com o líder da oposição
Não tem nada não
Não tem nada não [...]”
*
Recomenda-se, agregando uma palavra ao parênteses inicial, não viajar na maionese do anacronismo.
Equivale, essa viagem, a tingir de preconceito reverso o encanto de músicas que hoje podem não atravessar o filtro da correção política/ideológica.
Mas são de uma época em que caíam bem no gosto popular. Fizeram história, por seu valor estético, e aí estão.
Acho que deixar de rir de Chico Anysio (1931-2012) ou Jô Soares (1938-2022), hoje, não alcançar a genialidade de ambos, ou bem é desinformação, simples desinteresse ou — peço licença poética — opacidade espiritual.
Chico Anysio, aliás, também exerceu seu gênio como letrista em sambas-canções e marchinhas.
E cantou, ao lado de Arnaud Rodrigues (1942-2010), no álbum da dupla satírica “Baiano e os Novos Caetanos” (1974).
Não se esquecem facilmente as faixas “Vou Batê pá Tu” (Arnaud Rodrigues e Orlandivo) e “Urubu Tá com Raiva do Boi” (Geraldo Nunes e Venâncio).
*
Não creio que alguém possa implicar com o xote “Pisa na Fulô”, de João do Vale (1934-1996), Ernesto Pires e Silveira Jr.
Surgiu em dois discos 78 rotações, no mesmo ano de 1957, com Marinês e sua Gente (Sinter) e Zé Gonzaga (Copacabana).
Minhas versões predileta são a de Nara Leão (1942-1989) e a do próprio Vale com Alceu Valença, álbum “João do Vale” (Sony, 1981).
Essa crônica de um baile de uma música só, em que ninguém conseguia ficar parado, é memorável desde a introdução:
“Um dia desse fui dançar lá em Pedreiras
Na rua da Golada,
Gostei da brincadeira
Zé Caxangá era o tocador
Mas só tocava pisa na fulô”.
O próprio Alceu, por falar nele, gravou a divertida “Fé na Perua” (dele com Zé da Flauta), no álbum “Cinco Sentidos” (1981), com o conhecido refrão “o povo tá comendo vidro/ E tá pior vai piorar”.
Alceu, que nunca abriu mão de um lado palhaço, um de seus dons artísticos, homenageia na letra o grande cantor paraense Ary Lobo (1930-1980) ao citar “Eu Vou pra Lua” (de Luis Boquinha e Lobo) no verso “E Ary Lobo resolveu morar na lua/ Partindo do Sputnick do campo do Jequiá”.
E Alceu, por sinal, gravou — com grande reverência e carinho a seu mestre — “Cantiga do Sapo”, de Buco do Pandeiro e Jackson do Pandeiro (Colúmbia, 1960), no álbum “Forro de Todos os Tempos” (1998).
Ouça também, na Playlist da edição, a versão da música de estúdio, fiel ao arranjo original de Jackson.
*
Noel Rosa (1910-1937) também me encanta (e enternece) como mestre do humor elegante.
Lembro apenas seus sambas “Gago Apaixonado”, “João Ninguém”, “Conversa de Botequim” ou “O Orvalho Vem Caindo” (com Kid Pepe).
Acho adorável esta versão de “João Ninguém” com Tom Jobim, do “Songbook Noel Rosa” (1991).
Igualmente, “O Orvalho Vem Caindo”, do mesmo álbum, com Carlos Lyra (1933-2023) e Verônica Sabino.
“João Ninguém”, “Conversa de Botequim” e o “Orvalho Vem Caindo” recorrem ao mesmo tema do miserável, ou malandro, capaz de sobreviver, eventualmente até se dar bem, a despeito das adversidades. Nada mais brasileiro.
*
Mas Luiz Gonzaga, oxente, não pode ficar fora dessa rapsódia de jeito maneira.
O compositor e cantor de “ABC do Sertão” (com Zé Dantas) ou “Dezessete e Setecentos” (com Miguel Lima) sabia como poucos o que o povo mais apreciava.
“Baião de Dois” e “Respeita Januário”, ambas em parceria com Humberto Teixeira, são outros rubis de sua obra.
“Respeita Januário” também é mensagem carregada de humor e afeto pelo pai, uma declaração de amor ímpar.
“Luiz, respeita Januário (…)
Respeita os oito baixos de teu pai!”
Caetano Veloso gravou as duas com distinção.
Mas “Respeita Januário” (também registrada por Lenine) é uma delícia nesta versão do próprio Gonzaga.
A parte falada, mais no final, não é menos que o instantâneo de um tempo, em sua graça comovente.
*
Devo lembrar que a canção popular brasileira é marcada por dois patos célebres.
O mais velho, da dupla Jaime Silva e Neusa Teixeira, é um samba que parece ter sido criado por João Gilberto (1931-2019), e de certa forma foi mesmo.
Ele trazia a música do repertório de Os Garotos da Lua desde 1948, grupo que integrou por uns tempos.
Mas o samba só viria a ser registrado em 1960, quando João o gravou com arranjo e acompanhamento de Tom Jobim (1927-1994) ao piano.
E João deu vida eterna ao quarteto composto por pato, marreco, ganso e cisne.
Que nunca parou de tocar e de ensaiar seu “Tico-Tico no Fubá” na beira da esplendorosa lagoa bossa-novista.
O segundo pato é a singela valsinha com assinaturas de Paulo Soledade (1919-1999), Toquinho e Vinícius de Morais (1913-1980), gravada em 1972 no álbum “Vinícius Canta: Nossa Filharada”.
É a historinha (a toquei muito pra acalentar meu filho) do tal pato levado que apronta, apronta, até terminar seus dias na panela, coitadinho.
*
Eu me pergunto quem teria coragem de regravar, hoje, ou mesmo cantar por aí, ainda que num caraoquê, se ainda existem caraoquês, “O Rock da Cachorra”.
Escrito pelo sátiro Leo Jaime e gravado pelo hilário Eduardo Dussek no álbum “Cantando no Banheiro” (1983), também de “Barrados no Baile”.
É a música mais nova desta Playlist da edição, e talvez a única condenada ao limbo.
Se ainda ouço o rock? Confesso às paredes que sim, de vez em quando.
Mas trato de botar o som bem baixinho ou usar fones.
Não quero macular a alegria de ninguém no incessante desfile de pets com seus passeantes aqui na minha rua, de onde avisto, se olho para o alto do morro, a gigantesca fachada de uma unidade da rede Petz.
Já a balada “Nostradamus” (1981), de sua autoria, podia até cair nas graças dos mais jovens, quem sabe ao menos dos menos caretas.
Conta o fim do mundo que surpreende o cantor depois de ele acordar “tarde de bode”, certa manhã.
Dussek a defendeu, apenas de cueca, no festival MPB Shell, da Rede Globo, em 1980.
A música não foi classificada mas projetou o inimitável artista.
*
No capítulo crônica, crítica ou ainda sátira de costumes, João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020) me parecem figuras olímpicas.
A pena afiada do tão letrista quanto poeta Blanc está em “Miss Suéter”, “Bijuterias”, “Plataforma”, “Linha de Passe”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “Kid Cavaquinho”, “Prêt-à-porter de Tafetá”, “Boca de Sapo” e bem mais.
Mas se me pedem para eleger duas canções da dupla pelo crivo do humor, cravo “Incompatibilidade de Gênios” e “A Nível de”.
Os dois sambas exploram o pitoresco no imaginário dos conflitos entre casais de classe média.
Há tiradas sobre o próprio casamento e cacoetes idiomáticos da época, a começar do título que incorpora a locução “a nível de” — e a letra traz a variação “a nível de proposta”.
“A Nível de” (do LP “Comissão de Frente”, de 1982) flagra um troca-troca de casais.
Em “Incompatibilidade de Gênios” (“Galos de Briga”, 1976), um marido revoltado lamenta no divã as pelejas com a patroa.
*
Da mesma verve vem o maxixe “Memórias Conjugais” (“Bebadosamba”, 1996), que Paulinho da Viola por sinal dedica, como presente de aniversário, “ao amigo e poeta Aldir Blanc”.
Destaco duas estrofes,
“[...] Lapidar, foi a sua frase
Proferida, de um jeito natural
Registrei esta preciosidade
Sem alarde no meu livro de memórias conjugaisTenho asas, meu amor, preciso abri-las
Ao seu lado não sou muito criativa
Depois dessa, fui em busca do meu antidepressivo
E afundei, no sofá com meus jornais [...]”
*
Por ora é isso, acho. Salve, saravá e abraçaço!